quarta-feira, novembro 30, 2005

MIGUEL SOUSA TAVARES


Unidos na desgraça

BENFICA e FC Porto estão finalmente unidos: unidos na desgraça holandesa. Para quem esperava que a contratação de dois treinadores holandeses por parte dos dois maiores clubes portugueses viesse revolucionar o respectivo jogo, trazer ao nosso campeonato a versão moderna do tal «futebol total» que imortalizou a escola holandesa e pôr um e repor o outro no trilho da Europa de luxo, estes primeiros três meses da experiência holandesa têm sido frustrantes. Ambos estão à beira de ser implacavelmente afastados da Liga dos Campeões e em risco até de o serem também da Taça UEFA, desperdiçando a sorte que os colocou em dois grupos classificativos perfeitamente acessíveis, e depois de públicas e reiteradas demonstrações de medo, falta de ambição, de estratégia e de clarividência. E se, internamente, o Benfica caminha vários passos atrás do FC Porto, num impensável 6.º lugar, também é verdade que já venceu no Porto, onde Koeman deu uma lição de estratégia a Adriaanse. Ontem, mercê de uma vitória feliz em Barcelos — uma vez mais devida ao talento de Ricardo Quaresma e após mais uma exibição miserável, em que Adriaanse voltou amostrar todas as suas qualidades estáticas no banco — o FC Porto ganhou oito pontos de avanço sobre o Benfica. Mas tudo pode ficar mais nivelado entre ambos (nivelado por baixo), se, na próxima sexta-feira, conforme é de temer, também Paulo Bento for ao Dragão ensinar a Co Adriaanse como é que se ganha um jogo importante. Olhando para este primeiro terço de campeonato e para o que treinadores portugueses têm feito à frente de equipas como Nacional, Sp.Braga e Vitória de Setúbal, só podemos concluir que se Koeman e Adriaanse fossem portugueses já estariam despedidos.


Bem vistas as coisas, Koeman tem mais desculpa do que Adriaanse. O Benfica dispõe de pouco mais de metade do orçamento do FC Porto, tem tido menos apoio do público no seu estádio e tem, sobretudo, pior equipa e pior banco. Com a lesão de Simão tornou-se evidente, para quem ainda pudesse ter dúvidas, que todo o futebol de ataque do Benfica depende dele, passa por ele e conclui-se quase sempre com ele. Com a lesão dos dois guarda-redes principais foi a vez de abanar de alto a baixo toda a estrutura defensiva, remetendo o Benfica para uma série de seis jogos sem vencer e para uma atitude competitiva própria das equipes que tudo temem e nada arriscam. Isso não justifica todos os erros de Ronald Koeman—como a ideia de jogar com quatro centrais, dois laterais e dois trincos, em Paris, praticamente em «casa», contra uma equipa menor da cena europeia e num jogo em que só lhe podia interessar ganhar. Mas a verdade é que a actual equipa do Benfica é o resultado de uma penosa reestruturação, iniciada há dois anos atrás e a partir praticamente do nada. E, a menos que apareça um Abramovitch caído do céu, nenhuma equipa é capaz de passar de banal a bestial em dois anos. Independentemente dos erros cometidos, Koeman tem ao seu dispor o que tem—e o que tem é manifestamente pouco para as ambições alimentadas pelos seus dirigentes. Não é por acaso que estes já puseram em marcha a campanha de sensibilização dos árbitros e da Comissão de Arbitragem, aliás fundada em pretensas razões de queixa ridículas: quando não se tem cão, caça-se com gato.


Já no FC Porto, as coisas são radicalmente diferentes. O que não tem faltado ali são milhões ao desbarato para comprar jogadores em série—doze a quinze em cada ano que passa — e pagar salários de luxo ao primeiro que aparece ao virar da esquina.E se Adriaanse pode dizer que a equipa não é dele, mas do presidente (o que é verdade), também é duvidoso que fosse melhor ao contrário, a avaliar pelas estapafúrdias equipas que escala para pôr a jogar, ou até pelo único jogador por si escolhido — o turco Sonkaya, que conseguiu a proeza de fazer as bancadas do Dragão destilar saudades do Secretário. Adriaanse tem e teve tudo para conseguir estar hoje numa posição intocável perante os adeptos, a começar por um fulgurante início de época, unanimemente elogiado por todos.E tudo a sua teimosia e a sua soberba levou...O futebol de ataque, que deslumbrou ao ponto de levantar críticas pela sua ousadia, foi caindo, caindo, ao ponto de entrar a jogar em casa, num jogo em que só a vitória interessava, contra o medíocre Glasgow Rangers, desfalcado e em crise profunda, sem nenhum ponta- de-lança e reduzido na prática e 10 jogadores, pela teimosia em voltar a insistir no inútil Jorginho. Em cinco jogos da Liga dos Campeões, Adriaanse perdeu três, empatou um, equivalente a derrota, e só ganhou um, graças a dois ressaltos felizes.E, revendo o filme de cada um dos seus quatro desaires, é justo reconhecer que todos eles foram perdidos por influência directa do treinador—tal como sucedeu contra o Benfica. Em todos eles tornou-se gritantemente evidente que Adriaanse não estudara os adversários, não tinha nenhuma estratégia para os jogos, escalou equipas sem lógica visível, fez substituições sem nexo, e não conseguiu segurar nenhuma das situações de vantagem de que dispôs em todos eles. Tranquilamente, podia ter agora 11 pontos e o primeiro lugar garantido: tem quatro e fortes hipóteses de terminar o grupo em último lugar. É certo que ainda pode conseguir o milagre, mas, não só não o merece, como nada poderá já apagar a imagem repetida dos sucessivos erros de pura incompetência acumulados. Pinto da Costa bem pode — num acto que no passado deu frutos mas que agora surge como uma deslocada provocação aos adeptos—prolongar-lhe o contrato de dois para três anos, sem que os resultados ou o mérito o justifiquem. Mas, a continuar assim, o problema do presidente do FC Porto, para a próxima época e a seguinte, vai ser o de convencer os sócios de lugar cativo a renovarem os seus lugares. E, sem eles, não há público no Dragão nem dinheiro para o festival de compras do Verão.


Ontem à noite, contra o Gil Vicente, foram os gritos dos adeptos, por exemplo, que obrigaram Co Adriaanse a perceber, quase no fim, aquilo que qualquer adepto habitual de futebol já tinha percebido: que era preciso refrescar o ataque, tirar aquele estranho caso patológico em que se transformou o Jorginho e tirar o mais que desgastado Lisandro López. Se ficasse aqui a enumerar todas as situações gritantes, evidentes, em que o treinador do FC Porto foi a única pessoa no estádio a não perceber o que se estava a passar no jogo, nunca mais acabaria. Eu olho para ele e vejo-o sempre sem expressão, sem reacção, incapaz de comunicar com os jogadores, de transmitir ordens para dentro, de ver o jogo decorrer conforme uma estratégia planeada (como fazia Mourinho), ou, ao menos, de corrigir as coisas no decorrer do jogo (como fazia António Oliveira). Vejo-o sim dar asas aos jogadores e depois liquidá- los sem explicação; promover a indiscutíveis jogadores que nada provam e subitamente desprezar outros que toda a gente percebe que são mais-valias, como já sucedeu com Quaresma e agora sucede com McCarthy. Tudo sem nexo, sem critério, sem correspondência com o que se vê durante os jogos. Tudo aparentes caprichos de um vaidoso que não tem currículo para o ser. Adriaanse deveria ter aprendido a lição de Mourinho: não é vaidoso quem quer, mas quem pode.