Futebol no tribunal
Este campeonato já está decidido e é do FC Porto, como sempre foi fácil de prever. O próximo, ou o de 2009/10, começa a jogar-se brevemente no Tribunal de Aveiro — onde o presidente do FC Porto vai ser julgado por crime de corrupção activa e o árbitro Augusto Duarte por crime de corrupção passiva. A este campeonato não há Apito Dourado que lhe possa valer: se alguém se atrevesse sequer a insinuar que os 16 pontos de avanço do FC Porto se devem a favores de arbitragem ou outras manobras de bastidores, morria instantaneamente de rídiculo na praça pública. Mas para o próximo, as almas pequeninas estão esperançadas em que o tribunal consiga dar como provado o crime de corrupção, o que logo habilitará a Liga de Clubes a decidir em cascata:
— a irradiação de Pinto da Costa e de Augusto Duarte;
— a descida compulsiva do FC Porto à Liga Vitalis;
— a retirada retroactiva do título de 2003/2004 ao FC Forto e sua atribuição ao Benfica (que, se a memória me não falha, ficou para aí a uns 11 pontos de atraso).Daqui, por sua vez, retirar-se-ão outros corolários de «moral» e «verdade desportiva», a saber:
— que, se o árbitro do Beira-Mar-FC Porto de 2003/2004 — um jogo que já nada interessava a qualquer dos contendores — foi comprado, é de presumir, por maioria de razão, que foram comprados ou abordados em vão todos os outros árbitros dos jogos do FC Porto que, esses sim, contaram para o título dos portistas;
— que, se isto foi assim nessa época e por iniciativa de Pinto da Costa, é de presumir que assim tenha sido ao longo dos 25 anos que ele leva de presidência. Fica assim esclarecida a razão para os êxitos recorrentes do FC Porto, nas últimas duas décadas;
— o Tribunal de Aveiro e a Liga irão certamente notificar a UEFA e a FIFA para que elas investiguem as condições, a partir de agora suspeitas, em que o FC Porto conseguiu ser duas vezes campeão da Europa e do mundo, sob a presidência de Pinto da Costa;
- de caminho, cai por terra um outro mito, o da excelência de José Mourinho. Se se conseguir provar que Pinto da Costa pagou 2.500 euros ao árbitro de um jogo que já não contava para nada, como jura Carolina Salgado, quem pode atribuir a José Mourinho, aos jogadores ou à equipa qualquer espécie de mérito em terem conquistado nesse ano Portugal e a Europa? Afinal, era o presidente quem tratava de resolver a coisa, antes de o desfecho se decidir no relvado…
Aqui há umas semanas, na festa do Benfica, no Casino Estoril, Luís Filipe Vieira indignou-se porque ainda «não tinha acontecido nada» no processo Apito Dourado. Por acaso, já tinha, mas não o que ele queria: Valentim Loureiro, Pinto de Sousa e o presidente do Gondomar já tinham começado a ser julgados no Tribunal de Gondomar. Mas o que interessava a Vieira que o seu ex-sócio na direcção da Liga, o presidente dos árbitros por ele votado e o Gondomar FC estivessem a ser julgados? Vieira, como três quartos do país dito desportivo, entendia e entende que só se fará justiça se Pinto da Costa for condenado e irradiado e o FC Porto afastado por uns tempos da concorrência.
Pois, aí tem a vontade satisfeita. Enfim, um primeiro desejo. Um ano de esforços, de investigações, de muito dinheiro gasto aos contribuintes, permitiu a Maria José Morgado e à sua equipa convencer uma juíza a desarquivar um processo arquivado por uma outra colega e levar a julgamento quem se pretendia. Para tal, contaram apenas com um único facto novo: a radiosa testemunha Carolina Salgado, essa Joana d'Arc do futebol português, como lhe passaram a chamar os benfiquistas, depois de no passado lhe terem chamado coisas mais alternativas e menos grandiosas. A juíza aceitou a acusação, mas agora o Ministério Público não vai ter tarefa fácil em tribunal. Como coisas menores, vai ter de provar, por exemplo, que Pinto da Costa mente quando diz que não esperava e ficou incomodado com a visita a sua casa de Augusto Duarte. Mas isso é o menos. O essencial vai ser conseguir fazer prova:
— de que o FC Porto tinha um interesse justificado no resultado daquele jogo, ao ponto de subornar o árbitro;
— de que, de facto, o suborno aconteceu e o árbitro o aceitou;
— de que, tendo o corruptor pago para obter um resultado, o corruptor fez também a sua parte.
Ou seja, em tribunal, o Ministério Público vai ter de fazer prova de factos que integrem os três elementos essenciais do crime de corrupção: o móbil, a consumação e o nexo de causalidade (por favor, não confundir com casualidade).
O segundo elemento, a consumação do crime, assenta exclusivamente no testemunho de Carolina Salgado, o que faz antever grossas dificuldades e desilusões para o Ministério Público. Primeiro que tudo, porque, e se a defesa de Pinto da Costa fizer o que se espera, o mais provável é que a testemunha seja contraditada antes mesmo de depor e que a contradita seja aceite: entra pelos olhos adentro de qualquer pessoa de boa-fé que a testemunha se move por vingança pessoal e que a sua credibilidade merece zero de tolerância (não se trata aqui de um filme, feito por benfiquistas e em que se produz acusação e sentença, com base apenas no testemunho da senhora e sem lugar à defesa).
Em segundo lugar, a senhora Carolina Salgado é talvez adequada para impressionar fotógrafos de revista do jet-seis, mas, como já se viu com a sua prestação no Tribunal de Gondomar, é propensa a atrapalhar-se fora de cenas pré-montadas e a cair em contradições, esquecimentos e declarações inverosímeis. Pior ainda vai ser fazer prova do móbil do crime: com o campeonato resolvido e todas as atenções na final da Liga dos Campeões, que interessava ao FC Porto gastar 2.5000 euros a subornar o árbitro do jogo com o Beira-Mar?
E, quanto ao tal nexo de causalidade, que tanto parece aborrecer alguns «facilitistas», como provar que a corrupção se consumou se não houve afinal casos de arbitragem, conforme unanimemente reconhecido pela crítica da época, e se, no final, o FC Porto nem sequer ganhou o jogo?
Ou será que o digníssimo representante do Ministério Público vai sustentar em tribunal que o FC Porto pagou 2.500 euros para garantir um empate com o Beira-Mar, num jogo a feijões?
Ou vai sustentar a tese peregrina, inventada em estado de necessidade e que para aí circula, de que o FC Porto tinha o hábito de manter cautelarmente os árbitros comprados em todos os jogos, com base no princípio «se hoje não interessa, amanhã pode interessar»?
A coisa promete. É verdade que o estádio de Aveiro é mais um elefante branco construído para o Euro-2004 em que já nem o relvado se aproveita. Mas, se o estádio não tem préstimo, o tribunal pode ter. E Aveiro volta assim ao mapa futebolístico português.
EM TEMPO: Já depois de escrito este texto, fui surpreendido com a notícia de que a Liga de Clubes, com base nos mesmos factos e na decisão instrutória do Tribunal de Gondomar, decidiu instaurar um processo disciplinar ao FC Porto e ao seu presidente, com fundamento em corrupção desportiva. E digo surpreendido, porque não vejo com que meios investigatórios é que a Liga vai conseguir fazer prova daquilo que o M.º Público não conseguiu e que só o tribunal poderá apurar. Imagine-se que a Liga, tão espicaçada pelo Benfica, condena o FC Porto a descer de divisão e depois o tribunal o absolve: como é, pedem desculpas retroactivas e pagam os milhões de contos de prejuízos causados?
Não seria mais curial, por exemplo, investigar para já o caso (arquivado pelo Ministério Público) da escuta telefónica em que Valentim Loureiro e Luís Filipe Vieira combinam o árbitro que o Benfica queria para um jogo da meia-final da Taça de Portugal, contra o Belenenses?
O «Senador» benfiquista Silvio Cervan, cujas crónicas não serão propriamente um modelo de isenção clubística (como pode, aliás, um dirigente de clube ser isento?), afirmou aqui, no sábado, que é injusto atribuir apenas a favores de arbitragem o segundo lugar ocupado pelo Vitória de Guimarães, e que tanto preocupa e humilha o S. L. Benfica. De facto, é injusto. Mas quem, senão ele é que se lembrou de afirmar tal coisa? Estaria a falar com a própria consciência?