O grande Vitor Baía voltou ao seu normal, nada melhor que esta fantástica crónica do Álvaro Magalhães de ontem:
Quem teve a culpa da derrota do F. C. Porto na Luz? Baía, Adriaanse, a bola Teamgeist?
Baía sofreu um golo à Kralj (lembram-se?), só ao alcance de um guarda-redes míope. Porém, se o inoperante sistema de Adriaanse tivesse funcionado, esse lapso não teria sido erguido à categoria de calamidade. Quanto à tal bola que engana os guarda-redes, também terá as suas culpas, embora ninguém se importe, já que os avançados cada vez têm mais dificuldade em o fazer. Não fora ela adestrada para escapar às leis da física (e às da vida) e provavelmente nada teria acontecido na Luz.
Porém, só Baía trouxe de lá uma cruz, a qual terá de arrastar agora penosamente até ao local da sua morte anunciada. De facto, quase toda a gente lhe fez o funeral, mesmo os seus acérrimos defensores, como Miguel Sousa Tavares, que logo no dia seguinte se referiu ao "fim injustíssimo da carreira de Baía". A palavra "injustíssimo" adocica a coisa, mas como é que MST viu naquilo um fim, ele que ainda há pouco afirmara solenemente que "o F. C. Porto sem Baía era como o Vaticano sem o Papa?" Estes, que tão depressa fazem um prefácio à vida de um herói como se apressam a erguer o seu epitáfio, são os que atacavam Adriaanse por ter trocado Baía por Helton e agora suspiram pela rápida recuperação do brasileiro.
Por sua vez, e talvez porque também considerem que para Baía não há mais vida para além do banco, esta semana quase todos os nossos jornais desportivos nos mostraram extensas resenhas da sua carreira e dos seus feitos, as quais, na verdade, se assemelhavam a obituários. Se assim se empenham em lembrar-nos quem ele foi é porque se convenceram que ele já não é. Logo,há no fundo destes elogios uma intenção piedosa e fúnebre, para não dizer exterminadora, já que partem de uma cruel evidência: Baía já não é o que era. Logo, já era, como dizem os nossos jovens.
Se ele fosse um avançado e falhasse um pénalti, quem não lhe perdoaria? Porém, um guarda-redes que tem um lapso decisivo num jogo grande encontra aí a cruz onde será sacrificado. Barbosa, o guarda-redes do Brasil de 1950 e que foi responsabilizado pela derrota com o Uruguai na final do Mundial desse ano (2-1), comprou mais tarde os postes e a trave da baliza onde sofreu o fatídico golo de Gigghia e com essa madeira mandou fazer uma cruz, símbolo do seu martírio.
Baía tem 36 anos, mas pertence a uma estirpe de guarda-redes excepcionais que envelhecem debaixo da barra da baliza, como Dino Zoff, que tinha a sua idade quando jogou no Mundial de 78, ou o holandês Jongblead, que era titular da selecção aos 38 anos, ou Al-bertosi, que defendia a baliza do Milão aos 40 anos, ou ainda Ya-shin, que jogou até aos 41. Todos eles morreram devagar e não assim, de modo fulminante. Mais: morreram quando souberam que iam morrer, porque só eles sabem, como um animal moribundo, quando chega a hora da sua imolação inevitável. Nessa altura, porém, não se lançam em voo para deter o disparo mortal porque conhecem de antemão os perigos sem remédio, a dose do tempo e do espaço que são necessários para se chegará morte.
Voltamos ao princípio. Baía teve um lapso impróprio de um guarda-redes experiente, desses que, sendo já incapazes de respostas fulgurantes, recorrem a uma boa colocação e pressagiam as tra-jectórias da bola, mas é apressado (e lúgubre) ver nisso um indício do seu fim, mesmo que ele nos pareça natural. No futebol também não há vida depois da morte, mas ele continua vivo (e isso há: a vida depois da vida). Digamos que apenas terá de caminhar durante algum tempo com a tal cruz às costas. Ouçam pois como ele respira hoje no Dragão à sombra da baliza, ou, mais tarde, na penumbra dolorosa do banco, onde terá a grande paciência de esperar, mais uma vez, pela sua vez.
Por muito ou por pouco, é certo que esta semana o mataram várias vezes, e também é certo que, apesar disso, ele sobreviverá, tal como sobreviveu a outros transes e desmentiu em outras alturas outros coveiros apressados.
O Baía morreu? Viva o Baía!