Carlos Pereira Santos na Abola:
D. Sebastião
QUANDO Marcello Caetano estava por cima do quadro de ardósia, com um sorriso cínico, mais Américo Thomaz com a taixa à campeão, e o crucifixo ao meio (disto gosto e respeito), acreditava que o D. Sebastião era um herói, que perdeu o tino no meio do nevoeiro, embora com o passar dos anos começasse a duvidar do sentido de orientação do jovem rei, porque cresci nas manhãs de nevoeiro de Leça e sempre consegui encontrar o caminho para casa. Mas o D. Sebastião foi o meu herói. E não se escandalizem que em aldeias onde a água potável ainda não chegou e a música dos Beatles tem a mesma força que na Coreia do Norte, ainda há quem acredite que o desejado há-de chegar a cavalo e fazer da esperança nacional a certeza de grandes conquistas. O mundo rolou, como uma bola, e o futebol passou a ser a feira das vaidades, das necessidades, já ganhou eleições em clubes, já ganhou eleições para o Governo do pais (vide Vilarinho), e é a montra mais apetecível deste país rendido a espanhóis. Na passada semana, por momentos, num canal pago pelos portugueses, pensei que tinha no meu televisor o D. Sebastião, o salvador da pátria, o salvador do futebol português. O impoluto. 0 homem capaz de vencer o nevoeiro, o homem que em miúdo agarrava as moedas que os elefantes do Zoológico rejeitavam com a mesma vontade com que irrequietos romanos agarravam as moedas atiradas para a esplendorosa Fonte de Trevi. Acredito que Filipe Vieira seja o D. Sebastião. Deixem-no ser o Presidente da República, da UE, da ONU, deixem-no ser qualquer coisa, mas levem-no daqui ou, pelo menos, não façam dele o santo que não é.
Manuel Martins de Sá, de Itália na Abola:
O apito da discórdia
1- Confesso que nunca acreditei que o Apito Dourado pudesse vir a ter quaisquer consequências no plano desportivo. Não porque soubesse que a lei anti-corrupção é ou poderá ser inconstitucional; não porque tivesse conhecimento de que as escutas não estavam previamente autorizadas por qualquer juiz(a); não porque imaginasse que a gravação de algumas das conversas era ininteligível; não porque estivesse à espera de que a juíza titular do processo não viesse a ter tempo para ouvir as gravações em tempo útil; não porque me passasse pela cabeça que haveria desavenças pessoais insanáveis entre o procurador-instrutor e o presidente da Liga. Por outro lado, sabia que os arguidos, patrocinados por advogados hábeis e experientes, iriam remover montanhas para obstruir o andamento do processo e esvaziar o conteúdo das acusações; tinha conhecimento de que a justiça não funciona em Portugal; imaginava que, através de recursos e incidentes processuais capciosamente suscitados, toda a acusação se iria arrastar por anos, com prováveis ou inevitáveis prescrições pelo meio, como acontece a cada passo; estava à espera, dada a sua írrelevância acusatória, que vários dos ilícitos praticados, viessem a cair por si mesmos. Em suma, por isto e por muito mais, nunca acreditei que o Apito Dourado viesse a ter resultados práticos. E espanta-me que muitos, perante a iminência desta confirmação, levantem vozes de protesto, revolta e indignação, porque este é dos tais casos que «antes de o serem já eram». Espanta-me, mas compreendo que não se resignem.
2- Sejamos honestos. Alguém acredita que um «Apito Dourado» que tem como berço a comarca de Gondomar e como epicentro o clube da terra - que, pelos vistos, ocupa 80 ou 90 por cento dos telefonemas registados -representa uma amostra significativa do fenómeno da corrupção no futebol português?
Onde só mais 4 ou 5 clubes são marginalmente referidos como tendo pisado terrenos minados? Em especial em jogos da Taça, a prova menor?
Quem é que, nessa recolha de dados, tinha o telemóvel «grampeado»?
Todos os dirigentes da Liga, todos os dirigentes dos árbitros, todos os presidentes dos clubes, todos os árbitros ou apenas uma pequena parte desta gente toda?
Se era apenas uma parte, a quem coube o critério da escolha? Porquê?
Poderia continuar indefinidamente com estas perguntas, mas é inútil. Se prosseguisse, não estaria de boa-fé nem no meu perfeito juízo. E eu estou.
3- Nesta matéria, o que eu penso é muito simples. Se se quisesse ter uma ideia aproximada da real dimensão da corrupção no futebol em Portugal, não se teriam posto sob escuta apenas meia ou uma dúzia de telemóveis de pessoas escolhidas a dedo, mas sim os de toda a gente que acima referi. E sabem porquê?
Por eu estou plenamente convencido de que em questões de ligações perigosas com árbitros, directas ou indirectas, não há nenhum clube das duas Ligas profissionais que tenha as mãos absolutamente limpas. Repito: nenhum, agora ou antes.
Nada de diferente do que se passa em todos os outros sectores de actividade, porque a sociedade (esta nossa sociedade) é intrinsecamente corrupta sem excepção e o futebol não poderia nunca fugir à regra. E quanto mais dinheiro ele movimentar, mais corrupto será. Infalivelmente.
E não me venham com o tão elogiado exemplo de Itália (que conheço melhor que ninguém) que, afinal, está a degenerar numa pantomina. Também eu, de início, caí no logro de acreditar na depuração. Começou bem mas, depois, descambou e ainda promete descambar mais.