segunda-feira, julho 19, 2004

O Rei dos Frangos escreveu um livro

O Rei dos Frangos escreveu um livro e como quem não tem palmarés fala de quem  o têm , falou do Vitor Baía.
 
Aqui fica a entrevista , que Vitor Baía deu  2 anos atrás: 
 

Inevitavelmente, ou o trabalho com Vítor Baía estaria naturalmente incompleto, abiru-se nesta entrevista espaço ao tema-Selecção Nacional. Anda meio mundo, claro, à espera de saber o que pensa na realidade o guarda-redes português por não ter merecido ainda uma única convocatória de Luiz Felipe Scolari. Mas acredite o leitor: insistimos com Baía mas o resultado faz lembrar um daqueles jogos em que uma das equipas está 90 minutos ao ataque e não marca um único golo. Para ler e procurar perceber.


Baía mantém-se sereno, com ar de quem vê o jogo desenrolar-se junto da outra baliza. Garante que não fez mal algum ao seleccionador, fala da sua recuperação, do Mundial-2002 e da sua titularidade, de António Oliveira e do Euro-2004.
 
— Quando é que sentiu que estava completamente recuperado?
— Quando se está dois anos com quatro operações, com quatro recuperações, não é fácil chegar e voltar ao mesmo nível. Não vou dizer que estava bem desde que terminei a última recuperação. Faltava-me rotina do jogo, mas em termos físicos estava bem já antes do Mundial. Cheguei ao Mundial sem qualquer problema, mas ninguém em alta competição consegue estar parado dois anos e submeter-se a quatro operações e chegar e jogar logo a um nível elevado. Requer o seu tempo. A princípio, consegui disfarçar isso com a minha experiência e as pessoas não se apercebiam tanto de algumas dificuldades. Agora já tenho a rotina de jogo.
 
— Mas em que momento exacto percebeu que estava mesmo a cem por cento?
— Fui sentindo... E mantive sempre uma enorme confiança. Quando, em determinado momento, falei de injustiças não foi para me defender. Na minha cabeça só entra o que quero e consigo controlar-me muito bem. O problema era com as pessoas que me rodeavam. Durante estes dois anos, os meus pais perderam dez anos de vida. O sofrimento deles é que me fazia sofrer... Como o dos meus filhos. O Diogo, por exemplo, que está em idade escolar, sofria a ver algumas informações aberrantes na televisão sobre mim. Era mais isso que me incomodava. A minha preocupação era transmitir-lhes confiança, dizer-lhes que estava bem...
 
— O gesto do punho cerrado de cada vez que executava uma grande defesa tinha alguma coisa a ver com isso?
— Tinha, era para lhes dar confiança, para lhes mostrar a minha segurança, e também aos meus companheiros. Não posso marcar golos, mas posso, com uma defesa, transmitir confiança e galvanizar a equipa. Daí se calhar a minha postura agressiva; sempre para bem da equipa. Precisei de lhes dizer que estava bem, como estou, felizmente. Por exemplo, quem esteve no Mundial sabe porque é que eu joguei; quem viu esse mês de trabalho sabe porque joguei. O resto são fait-divers, é querer justificar o injustificável.

«António Oliveira não foi o responsável pelo fracasso no Mundial»

Foi aquela defesa contra a China, no último jogo particular, que lhe deu a titularidade na Coreia?
Essa defesa foi um momento emotivo e bonito, mas joguei no Mundial porque estava melhor. Porque demonstrei no trabalho, dentro do campo, durante um mês; é aí que os jogadores podem mostrar se estão melhores ou piores. Se não o demonstram aí, então não têm motivos para falar de injustiças. Nesse mês de trabalho demonstrei porque joguei. A seguir vieram dizer que foi o núcleo duro da Selecção Nacional que me pôs a jogar. Isso não cabe na cabeça de ninguém. Em alta competição é impossível isso acontecer. Foi mais uma barbaridade que se disse. Essa, e a de colocarem o mister António Oliveira como o principal responsável pelo nosso fracasso. Não tem cabimento. António Oliveira não foi o máximo responsável por aquilo que aconteceu.
 
— Então quem foi?
— Se estiverem atentos, se virem tudo o que aconteceu durante o Mundial, se repararem nas condições de programação, então talvez percebam...
 
— Os responsáveis ainda estão na Federação?
— ... Só quero dizer que António Oliveira não é dos principais responsáveis. E os jogadores tiveram um comportamento exemplar. Não podem apontar absolutamente nada aos jogadores.
 
— Estamos a conversar num momento em que a Selecção volta a estar em actividade e continua a não fazer parte dos planos de Scolari...
— Sobre esse tema já se disse muita coisa! Já me custa falar...
 
— Pode acontecer que o seleccionador tenha a mesma desconfiança que outras pessoas tiveram quando regressou à baliza?
— Não sei.
 

«Tenho orgulho em defender Portugal»

— Haverá alguma justificação que escape ao público?
— Não há nada extra-futebol que possa justificar, pelo menos que eu saiba, o facto de estar fora da Selecção.
 
— Já tirou alguma conclusão sobre o seu afastamento?
— Tenho a liberdade de raciocinar e de tirar as minhas conclusões, de pensar onde terei estado mal. Mas a única conclusão a tirar é a de que o seleccionador tem direito às suas opções.
 
— Há quem defenda a ideia de que o seleccionador desejará ter apenas um grande número 1 de cada vez... Bobby Robson, por exemplo, fazia isso...
— Não concordo. Acho que devem ir à Selecção sempre os melhores e não se deve ter medo de deixar este ou aquele jogador no banco.
 
— Está a imaginar-se fora do Europeu?
— Sinceramente, não! Sinto-me com capacidade para ajudar a Selecção a ganhar o Campeonato da Europa.
 
— E se ficar de fora, será um drama?
— Não é um drama. A tristeza não tem a ver com o facto de vir aí um Europeu; já estive em dois Europeus e num Mundial. Tem a ver com o orgulho em defender Portugal. Tenho 80 internacionalizações e tenho um orgulho muito grande de cada jogo que fiz. Tenho orgulho em ser português.
 
— Julga estar afastado por ser do F. C. Porto?
— Não. Isso acontece mais a nível de clubes. Já viram bem a carreira bonita que têm feito o Fernando Couto e o Sérgio Conceição? Tenho a certeza que se tivessem sido do Benfica ou do Sporting, a Comunicação Social falaria muito mais deles. Em relação à Selecção, as coisas não são assim. Portanto, não é de certeza por ser do F. C. Porto que não tenho sido chamado.

Errei com José Mourinho mas ele foi fantástico!
Mesmo numa época de tanto sucesso, houve um momento que marcou Vítor Baía: o incidente com José Mourinho. O número 1 das Antas (por acaso 99) recorda-o muito mais como factor positivo do seu percurso esta temporada (mesmo reconhecendo a sua negativa atitude) e faz revelações que ajudam, provavelmente, a compreender melhor o que aconteceu. Tempo de Baía abrir o coração talvez como nunca.

— Há dois anos estava aflito com uma série de lesões que lhe ameaçaram a carreira. À distância, como vê essa fase complicada?
— Foram momentos muito difíceis. Sinto-me muito mais forte a todos os níveis depois de, infelizmente, ter passado por esse período. Se calhar fazia parte do meu destino ter de passar por uma situação delicada como essa, porque até aos 28 anos foi tudo um mar de rosas. Foi estar no topo durante dez anos, ao mais alto nível, sempre sem quaisquer problemas, sempre a ganhar, a ver o lado positivo de tudo aquilo que conquistava. Em dois anos vi o outro lado. O lado negro.
 
— Pensou que a carreira tinha acabado?
— Sinceramente, não, nunca me passou isso pela cabeça. Podia estar aqui a dar uma de forte, mas não é isso. Acreditei sempre mais do que toda a gente. Tive uma fé tremenda... E esse foi também um momento difícil, porque a certa altura dava comigo a motivar os adeptos e todas as pessoas que vinham ter comigo, tristes, temendo que a minha carreira estivesse em risco.
 
— Foi mais complicado convencer quem o rodeava...
— Sim, porque sentia que as pessoas não estavam convencidas. Não estou a falar da família e dos amigos mais directos, mas dos adeptos que me abordavam na rua, que sofrem e que vivem o clube de uma forma bastante intensa. Eu é que os motivava... Acho que muitos pensavam que lhes estava a dar música. Até com isso tive de lutar...

Tempos difíceis no Barcelona

— Sentiu muitas incompreensões?
— Senti. Mas não me arrependo de nada do que fiz. Pela a minha educação desportiva, pela minha maneira de ser e pelo modo como vejo o futebol, só não jogaria se sentisse algo que tornasse humanamente impossível a minha utilização, como um fractura, por exemplo. De resto, sempre estive disposto a ir até ao limite do meu sacrifício.
 
— Isso aconteceu no Barcelona?
— Aconteceu. Tive problemas físicos e fui para dentro do campo. Estava num clube em que o mais fácil era defender-me, esconder-me e não jogar. Mas não o fiz. Era contra os meus princípios. Doía-me ver companheiros com uma dor de cabeça ou uma constipação e não jogarem.
 
— Colocou muita coisa em risco?
— Coloquei, mas, repito, não me arrependo de nada. Fiz sacrifícios pessoais em prol da equipa. No Barcelona, aliás, foi um acumular de situações que me conduziram à operação, mas também no F. C. Porto e na Selecção. Recordo um jogo da Selecção, que foi o da qualificação para o Europeu de 2000, no qual, nos últimos 15 minutos, estive em campo com extrema dificuldade. Portanto, os problemas não foram só a nível dos clubes, também os vivi na Selecção. Teria sido muito mais fácil dizer, desculpem, mas não posso...

O mundo a cair-lhe em cima

— E se pudesse voltar atrás?
— Não passaria por isso...
 
— O que diziam os médicos?
— Os médicos acreditavam que seria possível recuperar. Houve sempre uma postura correcta de todos eles, independentemente dos sucessos ou insucessos de algumas intervenções... Felizmente, na parte final da minha recuperação, encontrei o dr. Leandro Massada e tive um apoio extraordinário de todo o departamento médico do F. C. Porto.
 
— Pode ter havido erros clínicos?
— Erros cometem-se em todas as profissões. Ninguém é perfeito. Errar é natural, mas o que me valeu na altura foi sentir que as pessoas agiam de boa fé. Ninguém erra de propósito. Ninguém foi culpado disto ou daquilo. O único responsável sou eu. Dependia tudo muito de mim, eu sabia-o. Se quisesse, chegava ao clube e dizia, não jogo, não posso... Por isso é que me custou, depois de recuperado, que o mundo me caísse em cima.

Mourinho, o amigo; Mourinho, o superior

— Aprendeu a lição de não jogar sem estar nas condições físicas ideais, mas, depois de recuperar, no primeiro momento em que teve um problema numa vista, em que colocou a questão de jogar, teve um outro tipo de problema...
— Foi uma situação clínica. Os médicos do F. C. Porto sabem o que se passou. Não ficaram dúvidas. Não ter jogado foi a opção mais correcta.
 
— Mas a situação provocou um choque complicado. Muita gente temeu a repetição de um caso tipo o de Octávio com Jorge Costa...
— Mas resolveu-se. Conheço o José Mourinho há muitos anos. A minha relação com ele não é a normal entre treinador e jogador. É a de dois amigos que se conhecem há muito tempo, que sabem como reagem perante as situações, que sabem muito um do outro. O problema com o José Mourinho só aconteceu porque nos conhecemos muito bem. A minha única penitência é não ter visto naquele momento o José Mourinho treinador — vi o José Mourinho meu amigo. Não vi o meu superior hierárquico; vi uma pessoa com a qual tenho confiança para dizer tudo. Esqueci-me que ao nosso lado estavam os meus compa- nheiros de equipa. Esse foi o meu erro e reconheci-o, depois, muito facilmente. Estamos inseridos num grupo e há-que saber marcar as distâncias, porque José Mourinho é o meu superior hierárquico.
 
— A situação surgiu num momento ingrato...
— Senti que, depois de tanto tempo lesionado, do volta não volta, podia haver alguma desconfiança. Vou ser o mais aberto possível e espero que as pessoas não fiquem aborrecidas comigo. Houve uma altura em que senti da parte dos dirigentes do meu clube alguma desconfiança em relação à minha recuperação, à minha capacidade para contribuir para os êxitos da equipa. Tinha essa ideia. E o momento em que percebi que ela não correspondia à verdade foi, precisamente, a partir desse incidente. É nessa altura que passo a acreditar no contrário. A celeridade e a vontade das pessoas, nomeadamente do presidente, em resolver tudo o mais rápido possível foram a melhor prova de que afinal ninguém desconfiava das minhas capacidades.

Ponto de partida para uma época fantástica

— Quer dizer que esse problema acabou por ser... um bom problema?
— Sim, foi bom até para mim. Percebi que existia, e existe, por parte da administração do F. C. Porto confiança em mim e nas minhas capacidades. Estávamos em início de época e a partir daí fiquei consciente que contavam comigo. Todas as minhas dúvidas ficaram desfeitas. Afinal, não tinha razão para as ter, era tudo fruto do que me envolvia, de tudo o que se dizia. As pessoas só queriam o bem do F. C. Porto.
 
— Recorda algum facto marcante nesse apoio? Os seus companheiros apoiaram-no?
— Foi enorme a preocupação dos meus colegas, nomeadamente do Jorge, do Paulinho, do Secretário, do Capucho, mas também dos mais novos, de que tudo se resolvesse depressa. Tive a oportunidade de lhes explicar, cara a cara, o que tinha acontecido, e disse mesmo aos mais novos que se um dia se atrevessem a ter uma atitude do género da que eu tive, teriam de levar comigo. Todos perceberem exactamente o que aconteceu. E dou outro exemplo: gosto muito do mister Fernando Santos, mas não teria sido capaz da mesma reacção que tive com o José Mourinho. Hoje, a relação com o José Mourinho é a mesma que tinhamos antes do incidente – ele teve uma atitude exemplar! E foi absolutamente fantástico quando disse que, a partir do momento em que eu estivesse disponível, seria tratado como todos os outros. Foi uma espécie de ponto de partida para uma época fantástica.