Desmancha-prazeres
É apenas uma sugestão ou uma opinião contracorrente: mas talvez não nos ficasse mal, na perspectiva do Alemanha-2006, um pouco mais de humildade entre os já eleitos e um pouco mais de exigência entre os arautos.
1- Parece que Luiz Felipe Scolari não terá gostado muito de uns comentários de Gilberto Madail, criticando a prestação da Selecção contra o Liechtenstein, e deixou no ar a ameaça (ou a promessa...) velada de se poder ir embora, antes ainda do Mundial. Pode ser que não tenha passado de um arrufo de quem não está habituado a que ponham em causa os seus méritos, ou pode ter-se tratado de mais qualquer coisa, que ainda não sabemos: a verdade é que, há tempos atrás, vi uma entrevista do seleccionador a uma televisão brasileira onde ele afirmava que tinha convites de outras selecções ou clubes do Sul da Europa e era coisa que o poderia vir a interessar. Nessa entrevista Scolari só descartava a possibilidade de regressar ao Brasil, explicando que aqui recebia no dia 1 de cada mês e lá recebia quando calhava...
Mas esse ordenado pontualmente pago vem dos cofres da Federação e estes, por sua vez, são alimentados em parte pelo público que, como o de Aveiro sábado passado, enche os estádios para ver jogar a Selecção. Só abona a favor de Gilberto Madail que o presidente da Federação dê eco à frustração de 30 mil espectadores que tinham acabado de assistir a um jogo que roçou o limite do suportável - e já não era o primeiro nem o segundo.
Verdade se diga que o próprio Scolari não estava muito contente com aquela exibição, embora só no final o tenhamos percebido - ele que foi o primeiro a afirmar que um empate ou uma vitória por "meio a zero" já chegava: teve o que pediu. Há várias coisas em que Scolari só se pode queixar de si próprio, a primeira das quais é a sensação que ele transmitiu, desde que chegou, que a Selecção é praticamente imutável: são os mesmos de sempre, por pior que estejam ou por melhor que estejam os seus concorrentes. Recordo que, contra a opinião de toda a gente de bom senso, ele passou seis meses a treinar para o Europeu uma equipa onde não havia ninguém do FC Porto no meio-campo, apesar de esse meio-campo ser campeão europeu. E foi só após a derrota inaugural contra a Grécia, e na iminência de ver a equipa escandalosamente afastada da qualificação para os quartos-de-final, que ele se rendeu, enfim, à evidência. Nos tempos mais recentes, com sucessivas exibições medíocres dos intocáveis, só o seleccionador é que parece não ver a desinspiração continuada de algumas vedetas encartadas ou outras de recente extracção. E já nem falo do caso do Ricardo, porque, tendo sido o primeiro a falar disso, já me saturei do assunto e é tão evidente a razão que então tinha, e hoje salta à vista de todos, que a única coisa que posso dizer sobre isto, agora, é que a teimosia do seleccionador, que ele confunde com autoridade, é a pior ajuda que podia prestar ao guarda-redes do Sporting. Está a ser friamente lançado às feras para servir de instrumento ingénuo dos tiques de autoridade do seleccionador.
O mais notável e eloquente desta postura foi o facto de o seleccionador, após reconhecer a paupérrima exibição contra o Liechtenstein, afirmar tranquilamente que, dos 23 jogadores a levar ao Mundial, 20 já estavam escolhidos e, entre esses, dois dos três guarda-redes. A nove meses de distância, o que isto significa é que em nada adianta que os que estão de fora façam uma grande época ou que os que estão dentro se afundem na Selecção ou nos seus clubes: os lugares cativos mantêm-se intocáveis. Imagine-se a motivação que daqui deve resultar, para uns e para outros.
Não sei se o Presidente da República faz tenções de voltar a condecorar os heróis que agora asseguraram a qualificação portuguesa para o Mundial da Alemanha-depois de ter achado mais pertinente condecorar a Selecção que perdeu o Europeu para a Grécia, jogando em casa, que o FC Porto, campeão europeu e mundial de clubes. Mas eu, sinceramente, não vejo grande proeza em ter obtido a qualificação num grupo tão fácil como o que nos calhou em sorte, onde a única selecção com algum historial, a russa, atravessa o pior momento das últimas décadas. Já sei que é a primeira vez que nos qualificamos para dois Mundiais consecutivos e, entre Mundiais e Europeus, vamos em não sei quantas qualificações sucessivas. Convém porém não esquecer que anteriormente se qualificavam 16 selecções (e, depois, 24) para o Mundial e agora 32, e 8 para o Europeu e agora 16 (e, para o último, quem nos qualificou foram os portugueses que pagam impostos e pagaram o Euro-2004).
Não sei, é apenas uma sugestão ou uma opinião contracorrente: mas talvez não nos ficasse mal, na perspectiva do Alemanha-2006, um pouco mais de humildade entre os já eleitos e um pouco mais de exigência entre os arautos.
2- É suposto igualmente sentirmos uma profunda e lusófona alegria pela qualificação de Angola. É estranho: não consigo senti-la. Quando penso em Angola penso nos milhares de crianças estropiadas de guerra para quem não há dinheiro para as próteses, nos outros milhares que vagueiam pelas cidades em busca de comida nos contentores de lixo, e penso num país imensamente rico onde uns vivem no luxo e nas mordomias do poder e a grande maioria vive na miséria. E lembro-me do texto que Pepetela aqui escreveu no sábado, desejando, enquanto angolano, que Angola se não qualificasse, para que isso não servisse de pretexto a mais umas quantas despesas sumptuárias de uns tantos privilegiados e a desviar as atenções daquilo que verdadeiramente interessa. Infelizmente, há alturas em que o futebol serve a quem não deve.
3- É seguro que não vão faltar os comentadores lisboetas a verem na vitória eleitoral de Rui Rio a derrota do FC Porto e de Pinto da Costa. Se Rio, que governou de costas voltadas para o FC Porto, teve 46% de votos, é porque o Porto-cidade lhe deu razão nessa atitude. Mas como se explica então que, do outro lado do rio, o grande apoiante do FC Porto - Luís Filipe Meneses - tenha tido 58%?
É inútil tentar explicar que uma e outra coisa não estão ligadas e a vitória de Rui Rio teve que ver com outras coisas e não foi conquistada contra o FC Porto mas apesar disso. E, se é verdade que ele tem o mérito de ter ganho sem precisar do FC Porto, também este ganhou - no País, na Europa e no Mundo - sem precisar do presidente da câmara do Porto. E uma coisa eu vos posso garantir: é que, se no Mundo inteiro não há quem saiba quem é o presidente da câmara do Porto, também não há quem hoje não saiba que fica em Portugal uma cidade chamada Porto, onde joga o FC Porto.
Quanto mais não fosse, bastaria esse simples facto para que devesse ser tido como uma anormalidade o desprezo a que o presidente da câmara do Porto vota a instituição que até hoje mais fez pelo nome e pelo prestígio da cidade - mais até que o vinho do Porto. Em Lisboa tal facto é tido como motivo de louvor e exemplo da saudável separação entre o futebol e a política. Curioso é que não tenham nunca uma palavra a dizer sobre os apoios constantes que as sucessivas vereações camarárias de Lisboa dão ao Benfica, ao Sporting ou ao Belenenses. Não há nada mais confortável que pregar moralidade no quintal do vizinho...