Os pensadores do futebol
Bem-vindos sejam, pois, o Jorge Valdano, o Paulo Sousa e todos aqueles que, porque insistem em pensar, nos ajudam a pensar também e fazem de nós «pseudo-intelectuais». No futebol, como em tudo o resto
PAULO SOUSA já ontem aqui o escreveu e eu subscrevo: a chegada de Jorge Valdano como colunista de A BOLA é uma grande aquisição deste jornal e, para mim pessoalmente, uma honra tê-lo como companheiro de escrita. De há muito que sigo, mais ou menos regularmente, as suas crónicas sobre futebol e também acho que ninguém escreve como ele, reunindo em si duas qualidades raras: a experiência do futebol vivido por dentro, como jogador, treinador e director desportivo, e a capacidade de abstracção e reflexão vista de fora.
Justamente, e como dizia também Paulo Sousa, Valdano é um bom exemplo da capacidade de observação e reflexão que o futebol de hoje exige a todos: jogadores, treinadores, comentadores. Longe vai o tempo em que os jogadores se poderiam dividir simplesmente entre bons e maus, conforme a sua técnica e a sua força. Longe vai o tempo em que a um génio inato e autodidacta, como Eusébio, bastava apenas soltar o seu instinto e o seu génio para fazer toda a diferença. O verdadeiro génio dos tempos modernos é um jogador como o infortunado Anderson (por isso mesmo infortunado...), que pensa e executa em movimento e que, tal como os grandes jogadores de bilhar, quando está a executar uma tacada, já está a pensar na seguinte.
Hoje, o futebol, quer jogado, quer ensinado, quer pensado, exige essa outra qualidade, cada vez mais decisiva: a inteligência na leitura do jogo, do seu fluxo, do seu movimento. Como escreveu ontem Paulo Sousa, se ele chegou ao topo não foi por ser capaz de fintar três adversários numa cabina telefónica (como Valdano escreveu sobre Futre), ou por ser capaz de correr os 90 minutos sem parar. Foi porque teve a lucidez suficiente para perceber que o futebol requer inteligência de jogo e que essa se aprende ouvindo, lendo, observando, reflectindo. Aliás, e perdoem-me mais um elogio à gente desta casa, mas as próprias crónicas de Paulo Sousa (que leio sempre com imenso prazer e utilidade) reflectem a continuação dessa mesma atitude que o caracterizou como jogador e onde o conhecimento por dentro do futebol se alia ao seu estudo e observação visto de fora. E não é por acaso, certamente, que ainda há tempos, ouvindo na televisão os comentários a um jogo, feitos por um jogador ainda no activo — Rui Costa — pude constatar igualmente que a mesma inteligência que o distinguiu sempre como jogador continua a acompanhá-lo quando, esporadicamente, o vemos no papel de observador.
E lembrei-me de tudo isto também a propósito dos comentários de outro ex-jogador e ex-treinador, João Alves. Alves foi um grande jogador, mas no tempo em que o ritmo e a dinâmica do futebol eram diferentes e ele tinha tempo e espaço para o seu futebol, o que hoje não aconteceria. Mas Alves foi também um treinador fracassado e dá-me ideia, a avaliar pelo seu desabafo contra os «pseudo-intelectuais» que falam sobre futebol, que ele não percebeu as razões do seu fracasso. Devo dizer, em primeiro lugar e com o devido respeito, que sempre que oiço o discurso depreciativo contra os «intelectuais», sei que estou em presença de alguém que acha que a ignorância é uma virtude e que na vida, seja em que actividade for, é possível progredir e ter sucesso sem se dar ao trabalho de ler alguns livros, aprender algumas coisas com os outros e reflectir de vez em quando. Faz-me sempre lembrar a frase do general Newton Cruz, expoente larvar da antiga ditadura militar brasileira: «Quando oiço alguém falar de cultura, apetece-me puxar da pistola!» Também constato que, de cada vez que alguém quer diminuir o valor da cultura ou inteligência alheia, trata-a por «pseudo-intelectual». Parece assim que para esta gente nunca ninguém é suficientemente credível para merecer simplesmente a classificação de «intelectual»: todos os que sabem mais do que eles ou pensam melhor do que eles, não passam de «pseudo-intelectuais». O que será, para eles, pergunto-me, um verdadeiro «intelectual» — alguém que leu mais de mil livros, viu mais de 500 filmes, visitou mais de 50 museus?
Esta fobia de alguma gente do nosso futebol à presença em cena de «pseudo-intelectuais» discorrendo sobre futebol não é apenas um reflexo corporativo de treinadores fracassados ou comentadores encartados defendendo o seu feudo. É um verdadeiro instinto de medo, de autoprotecção. Que alguém possa ver da bancada mais e melhor do que eles vêem sentados lá em baixo, que alguém possa explicar que o futebol é um jogo simples de entender e não uma ciência oculta de conhecimento reservado a quem faz aqueles cursozecos de Verão, que alguém possa gozar e usar de uma liberdade de pensamento e de opinião que a eles, por interesses envolvidos com as partes envolvidas no jogo, lhes está vedada ou não é exercida, seguramente mete-lhes medo. O seu estatuto ficará certamente em perigo no dia em que a Sport TV, por exemplo, perceber que não basta ser treinador no desemprego para se ser capaz de saber comentar um jogo de futebol na televisão (há quem o faça bem e comedidamente, como Rui Águas, e há quem só seja suportável com o som desligado...).
O futebol moderno está carregado de exemplos de grandes jogadores que foram treinadores falhados e, inversamente, de jogadores sem história que se tornaram grandes treinadores: Arsène Wenger, Alex Ferguson, José Mourinho. De novo, o que fez a diferença não foi o conhecimento empírico sobre os meandros do futebol, mas a capacidade de aplicar a inteligência e a reflexão à estratégia escolhida para triunfar. Aliás, quando penso em alguns treinadores que vi actuar — desde logo, o exemplo que mais me vem à cabeça é José Mourinho — é impressionante constatar como quase sempre as suas opções e variações — tácticas, estratégicas e de jogadores — coincidem com o diagnóstico da bancada. É claro que por vezes discordamos e muitas vezes sem razão, pois escapam-nos dados de conhecimento que eles têm sobre o estado físico ou anímico de determinado jogador, sobre os pontos fortes e fracos do adversário, sobre o critério disciplinar do árbitro, etc. Mas, ao contrário do que alguns treinadores encartados pensam, da bancada vê-se muito bem o jogo e não é raro ouvir opiniões fundamentadas e inteligentes ou verificar que há um largo consenso de opiniões, que deriva daquilo que é fácil de ver a olho nu, sem necessidade daquele palavreado oco sobre as «compensações», a «equipa compacta e coerente» e outros chavões que tais. Mas nunca vi a bancada tomar por génio um banal caceteiro ou tomar por dispensável um desequilibrador. E constantemente vejo treinadores a fazer isso.
Bem-vindos sejam, pois, o Jorge Valdano, o Paulo Sousa e todos aqueles que, porque insistem em pensar, nos ajudam a pensar também e fazem de nós «pseudo-intelectuais». No futebol, como em tudo o resto.
Bem-vindos sejam, pois, o Jorge Valdano, o Paulo Sousa e todos aqueles que, porque insistem em pensar, nos ajudam a pensar também e fazem de nós «pseudo-intelectuais». No futebol, como em tudo o resto
PAULO SOUSA já ontem aqui o escreveu e eu subscrevo: a chegada de Jorge Valdano como colunista de A BOLA é uma grande aquisição deste jornal e, para mim pessoalmente, uma honra tê-lo como companheiro de escrita. De há muito que sigo, mais ou menos regularmente, as suas crónicas sobre futebol e também acho que ninguém escreve como ele, reunindo em si duas qualidades raras: a experiência do futebol vivido por dentro, como jogador, treinador e director desportivo, e a capacidade de abstracção e reflexão vista de fora.
Justamente, e como dizia também Paulo Sousa, Valdano é um bom exemplo da capacidade de observação e reflexão que o futebol de hoje exige a todos: jogadores, treinadores, comentadores. Longe vai o tempo em que os jogadores se poderiam dividir simplesmente entre bons e maus, conforme a sua técnica e a sua força. Longe vai o tempo em que a um génio inato e autodidacta, como Eusébio, bastava apenas soltar o seu instinto e o seu génio para fazer toda a diferença. O verdadeiro génio dos tempos modernos é um jogador como o infortunado Anderson (por isso mesmo infortunado...), que pensa e executa em movimento e que, tal como os grandes jogadores de bilhar, quando está a executar uma tacada, já está a pensar na seguinte.
Hoje, o futebol, quer jogado, quer ensinado, quer pensado, exige essa outra qualidade, cada vez mais decisiva: a inteligência na leitura do jogo, do seu fluxo, do seu movimento. Como escreveu ontem Paulo Sousa, se ele chegou ao topo não foi por ser capaz de fintar três adversários numa cabina telefónica (como Valdano escreveu sobre Futre), ou por ser capaz de correr os 90 minutos sem parar. Foi porque teve a lucidez suficiente para perceber que o futebol requer inteligência de jogo e que essa se aprende ouvindo, lendo, observando, reflectindo. Aliás, e perdoem-me mais um elogio à gente desta casa, mas as próprias crónicas de Paulo Sousa (que leio sempre com imenso prazer e utilidade) reflectem a continuação dessa mesma atitude que o caracterizou como jogador e onde o conhecimento por dentro do futebol se alia ao seu estudo e observação visto de fora. E não é por acaso, certamente, que ainda há tempos, ouvindo na televisão os comentários a um jogo, feitos por um jogador ainda no activo — Rui Costa — pude constatar igualmente que a mesma inteligência que o distinguiu sempre como jogador continua a acompanhá-lo quando, esporadicamente, o vemos no papel de observador.
E lembrei-me de tudo isto também a propósito dos comentários de outro ex-jogador e ex-treinador, João Alves. Alves foi um grande jogador, mas no tempo em que o ritmo e a dinâmica do futebol eram diferentes e ele tinha tempo e espaço para o seu futebol, o que hoje não aconteceria. Mas Alves foi também um treinador fracassado e dá-me ideia, a avaliar pelo seu desabafo contra os «pseudo-intelectuais» que falam sobre futebol, que ele não percebeu as razões do seu fracasso. Devo dizer, em primeiro lugar e com o devido respeito, que sempre que oiço o discurso depreciativo contra os «intelectuais», sei que estou em presença de alguém que acha que a ignorância é uma virtude e que na vida, seja em que actividade for, é possível progredir e ter sucesso sem se dar ao trabalho de ler alguns livros, aprender algumas coisas com os outros e reflectir de vez em quando. Faz-me sempre lembrar a frase do general Newton Cruz, expoente larvar da antiga ditadura militar brasileira: «Quando oiço alguém falar de cultura, apetece-me puxar da pistola!» Também constato que, de cada vez que alguém quer diminuir o valor da cultura ou inteligência alheia, trata-a por «pseudo-intelectual». Parece assim que para esta gente nunca ninguém é suficientemente credível para merecer simplesmente a classificação de «intelectual»: todos os que sabem mais do que eles ou pensam melhor do que eles, não passam de «pseudo-intelectuais». O que será, para eles, pergunto-me, um verdadeiro «intelectual» — alguém que leu mais de mil livros, viu mais de 500 filmes, visitou mais de 50 museus?
Esta fobia de alguma gente do nosso futebol à presença em cena de «pseudo-intelectuais» discorrendo sobre futebol não é apenas um reflexo corporativo de treinadores fracassados ou comentadores encartados defendendo o seu feudo. É um verdadeiro instinto de medo, de autoprotecção. Que alguém possa ver da bancada mais e melhor do que eles vêem sentados lá em baixo, que alguém possa explicar que o futebol é um jogo simples de entender e não uma ciência oculta de conhecimento reservado a quem faz aqueles cursozecos de Verão, que alguém possa gozar e usar de uma liberdade de pensamento e de opinião que a eles, por interesses envolvidos com as partes envolvidas no jogo, lhes está vedada ou não é exercida, seguramente mete-lhes medo. O seu estatuto ficará certamente em perigo no dia em que a Sport TV, por exemplo, perceber que não basta ser treinador no desemprego para se ser capaz de saber comentar um jogo de futebol na televisão (há quem o faça bem e comedidamente, como Rui Águas, e há quem só seja suportável com o som desligado...).
O futebol moderno está carregado de exemplos de grandes jogadores que foram treinadores falhados e, inversamente, de jogadores sem história que se tornaram grandes treinadores: Arsène Wenger, Alex Ferguson, José Mourinho. De novo, o que fez a diferença não foi o conhecimento empírico sobre os meandros do futebol, mas a capacidade de aplicar a inteligência e a reflexão à estratégia escolhida para triunfar. Aliás, quando penso em alguns treinadores que vi actuar — desde logo, o exemplo que mais me vem à cabeça é José Mourinho — é impressionante constatar como quase sempre as suas opções e variações — tácticas, estratégicas e de jogadores — coincidem com o diagnóstico da bancada. É claro que por vezes discordamos e muitas vezes sem razão, pois escapam-nos dados de conhecimento que eles têm sobre o estado físico ou anímico de determinado jogador, sobre os pontos fortes e fracos do adversário, sobre o critério disciplinar do árbitro, etc. Mas, ao contrário do que alguns treinadores encartados pensam, da bancada vê-se muito bem o jogo e não é raro ouvir opiniões fundamentadas e inteligentes ou verificar que há um largo consenso de opiniões, que deriva daquilo que é fácil de ver a olho nu, sem necessidade daquele palavreado oco sobre as «compensações», a «equipa compacta e coerente» e outros chavões que tais. Mas nunca vi a bancada tomar por génio um banal caceteiro ou tomar por dispensável um desequilibrador. E constantemente vejo treinadores a fazer isso.
Bem-vindos sejam, pois, o Jorge Valdano, o Paulo Sousa e todos aqueles que, porque insistem em pensar, nos ajudam a pensar também e fazem de nós «pseudo-intelectuais». No futebol, como em tudo o resto.