Segredos do apito
A sugestão que tenho a fazer é simples: que a televisão que na altura transmitiu o tal FC Porto- Estrela da Amadora volte a transmiti-lo, em horário que permita a todos os que se interessam pelo Apito Dourado voltar a recordar o jogo. Assim, todos poderiam perceber bem a existência ou não do tal nexo de causalidade e julgar por si a dimensão da tarefa que aguarda a Dr.ª Maria José Morgado
A Dr.ª Maria José Morgado está zangada e com razão porque o despacho que fez determinando a reabertura do processo relativo ao jogo FC Porto-Estrela da Amadora de 2004, apareceu publicado na net pouco depois de ter sido enviado a várias entidades, entre as quais os advogados dos arguidos no processo. Ela desconfia, e provavelmente também com razão, que a fuga de informação terá partido de um desses advogados. Em consequência, a Sr.ª procuradora adjunta determinou mais um daqueles inquéritos, sempre rigorosissímos e para ontem, para determinar quem será o violador do segredo de justiça. Há, porém, dois pequenos problemas a toldar o fundamento da fúria da senhora procuradora.
Em primeiro lugar, é altamente discutível que estejamos perante uma violação do segredo de justiça. É que, face à lei, tal só existe quando o processo está em segredo e, neste caso, o processo estava já arquivado e não havia, portanto, segredo algum a resguardar. Só a partir do despacho dela é que o segredo se reinstala. Em segundo lugar, não deixa de ser curioso que só esta situação tenha enfurecido a ilustre procuradora, e não todas as outras situações de violação do segredo de justiça — e, essas sim, indiscutíveis — que têm ocorrido com os interrogatórios à pessoa da D.ª Carolina Salgado, levados a cabo por ela. De há duas semanas para cá, desde que Maria José Morgado iniciou tais interrogatótios, temos sido confrontados com a descrição detalhada dos mesmos, publicada em alguns jornais e em tais termos que, mais do que relatos dos interrogatórios a uma testemunha, parece estar-se perante o teor de uma sentença sumária e condenatória dos arguidos. Ora, correndo uma vez mais o risco de enfurecer a fúria justiceira instalada tranquilamente em tantos espíritos moralizadores da praça, faço notar o seguinte: a Drª Maria José Morgado tem beneficiado do privilégio processual de interrogar livremente uma testemunha quando quer, onde quer, as vezes que quer, pelo tempo que quer. Fá-lo sem a presença de um juiz que possa impedir ou limitar formas inadmissíveis de interrogar, sem a presença dos acusados e de advogado que os represente e que possam contestar as perguntas, contra-interrogar, assegurar um princípio fundamental de direito penal, que é o do contraditório. Que estes interrogatórios, onde os arguidos não têm a menor hipótese de defesa e que se passam apenas entre gente do Ministério Público, apareçam depois publicados nos jornais, isso sim, é que é uma grave violação do segredo de justiça — que no passado e em casos semelhantes tem funcionado como uma forma de pré-condenação de suspeitos e pré-determinação da opinião pública. Que a ninguém ocorra mandar investigar essas fugas parece-me, de facto, curioso.
Mas vale a pena dizer algumas coisas mais sobre o segredo de justiça, cuja natureza e alcance, em minha opinião, tem sido totalmente deturpado. O segredo de justiça visa duas coisas: proteger a eficácia das investigações judiciais e os direitos de defesa dos arguidos. À acusação, isto é, a quem investiga, compete garantir a protecção de ambos os interesses; mas à defesa, aos arguidos, apenas é exigível, a meu ver, a protecção do segredo em benefício próprio. Se eu for chamado para ser interrogado num processo-crime, que está em segredo de justiça, não vejo que fundamento me poderá impedir, em minha defesa (e, numa fase processual em que praticamente não existem meios de defesa), de sair cá para fora e declarar: «Fui ouvido sobre isto e aquilo, coisas que não têm fundamento algum». Aliás, se algum dia me acontecer tal coisa, declaro desde já que, depois de interrogado, tratarei de dizer o que me apetecer — antes que a versão do meu interrogatório que possa convir à acusação apareça, soprada por ela, nos jornais. Assim como, se algum dia previr que me possa acontecer aquilo que aconteceu a alguns dos suspeitos do Apito Dourado, que foi o facto de, sem fundamento algum para suspeitar da fuga, terem sido mandados deter previamente para interrogatório, ficando depois presos dois ou três dias à espera que a juíza tivesse tempo para os ouvir, eu farei o mesmo que fez Pinto da Costa: vou para Vigo ou para Badajoz, e de lá telefono à juíza a perguntar-lhe o dia e a hora certa em que me quer ouvir, e só então me apresento. Porque, lá por serem juízes e magistrados, não têm o direito de ofender a liberdade das pessoas e enxovalhá-las previamente. Só não resiste aos abusos da autoridade quem está habituado a amochar habitualmente.
Em minha opinião, portanto, a suposta violação do segredo de justiça cometida por quem pôs a circular na net o despacho da Dr.ª Maria José Morgado:
— não me parece que possa ser juridicamente classificada como violação do segredo de justiça;
— a ser considerada tal e a ter sido cometida pela defesa dos arguidos, tem toda a legitimidade, face a anteriores violações — essas sim, indiscutíveis e graves;
— e, finalmente, num processo mediático como este, o conhecimento do teor do despacho da Procuradora reveste-se e revestiu-se de todo o interesse público.
Vejamos esta última afirmação. O despacho de Maria José Morgado confirma que a única razão que ela encontrou — os tais «factos novos» que permitem a reabertura de um processo já arquivado — são os depoimentos da D. Carolina Salgado. E permitiu-nos também ficar a saber que a Dr.ª Maria José Morgado não considera relevante a questão da credibilidade da testemunha, bem como a das razões que a levaram ao acto de traição e vingança pessoal que o seu livro e a sua súbita disponibilidade para colaborar com a Justiça revelam. E considera mal, obviamente: ao contrário do que ela escreveu, seja qual for o juízo final que, em tribunal, se venha a fazer sobre a credibilidade da testemunha, é evidente que tal facto não é «estranho ao processo», mas absolutamente decisivo para se chegar depois à conclusão subsequente sobre a veracidade do seu testemunho. Sustentar que Carolina Salgado é uma testemunha como outra qualquer, a quem nada de pessoal move contra Pinto da Costa, é uma crença manifestamente condenada ao fracasso em qualquer tribunal normal.
Resta depois o essencial. Pelo que li do que ela terá dito nos interrogatórios, se há coisas que ela não trouxe foram justamente «factos novos» — como aliás já se esperava. O que ela trouxe no livro e repetiu agora foi comida requentada. Disse o que já todos sabiam sobre o árbitro Jacinto Paixão, o empresário António Araújo e a fruta. Sobre isto, quero repetir o que já antes escrevi e que me parece absolutamente honesto: julgo que, de facto, o FC Porto terá proporcionado serviços, e não propriamente de fruta, ao referido árbitro e a pedido deste. Mas, reconhecido isto, restam por provar duas coisas: uma, que tal não é ou não era prática corrente em todos os clubes e em diversos jogos, incluindo os das competições europeias — onde os clubes da casa são supostos receber, instalar, oferecer as refeições e acompanhar os árbitros internacionais, satisfazendo-lhes as vontades e mordomias. Quem acha que tais coisas não sucedem em Lisboa, seguramente que imagina que em Lisboa também não existem respeitáveis estabelecimentos como o Calor da Noite. É preciso demonstrar, pois, que o tratamento dado pelo FC Porto a este árbitro foi a excepção e não a regra. Desconfio que há muita e insuspeita gente, entre a qual extremosos pais de família e dirigentes desportivos, a quem tal investigação não convirá por aí além.
A segunda coisa que será necessário provar é a tal chatice do «nexo de causalidade» entre o suposto acto de corrupção e o pagamento do favor por parte do corrompido. É, de facto, uma chatice, mas a lei assim o exige, e eu poderia explicar longamente porque é que tal exigência não é um formalismo oco, mas uma garantia essencial de que a justiça é feita, não por palpites, presunções e interesses de terceiros, mas por provas irrefutáveis. Sobre isto, e presumindo (se calhar, mal) que a Dr.ª Maria José Morgado não se interessa ou perceba de futebol, a sugestão que tenho a fazer é simples: que a televisão que na altura transmitiu o tal FC Porto-Estrela da Amadora, e que terá os direitos sobre ele, volte a transmiti-lo, com a devida publicidade e em horário que permita a todos os que se interessam pelo Apito Dourado voltar a recordar o jogo. Assim, todos poderiam perceber bem a existênca ou não do tal nexo de causalidade e julgar por si a dimensão da tarefa que aguarda a Drª Maria José Morgado. Seria um acto de serviço público.