A "Operação Apito Dourado" da PJ e do Ministério Público vai saldar-se por mais um momento de ridículo e descrédito da justiça portuguesa. A menos que as buscas completas aos arquivos da Federação e da Liga de Clubes permitam obter elementos para chegar onde verdadeiramente interessa, esta "mega-operação", como gosta de dizer a PJ, que terá envolvido 150 agentes e um ano de investigações (!), está condenada a tornar-se mais um inútil e arrastado folhetim mediático-justiceiro para encher noticiários e enganar papalvos.
Não é que não haja, muito provavelmente, corrupção e tráfico de influências no futebol português: se existe em todos os sectores da vida pública portuguesa, por que não existiria no futebol? Aliás e como é bem sabido, todo o futebol português gira à roda de laços que indiciam tráfico de influências instalado, como modo de vida permanente: deputados, governantes e autarcas que são ou foram dirigentes desportivos, autarquias que subsidiam clubes para além do que é legal e decente, o Governo Regional da Madeira e as suas relações de íntimo conúbio com os clubes da região, construtores civis que financiam clubes e campanhas autárquicas de dirigentes desses clubes, simultaneamente autarcas. Quanto à tão falada corrupção ao mais alto nível das arbitragens, seguramente que agora, com todos os dados na mão, a PJ e o MP vão poder esclarecer-nos se ela existe ou é apenas ficção sabiamente alimentada por crónicos maus perdedores. Tudo isto, mais o futebol como território de lavagem de dinheiro sujo, como acusa Maria José Morgado, é aquilo que verdadeiramente interessa saber. Não é, com certeza, apurar a verdade desportiva da palpitante carreira do Gondomar Sport Clube no nacional da terceira divisão. Por importante e simbólico que isso possa ser, não é isso que o país, os telejornais e os jornais esperam.
Consciente disso, ao terceiro dia de "Apito Dourado", a imprensa atirou-se, sôfrega, a uma nova pista lateral: Pinto da Costa. Já anteontem, auscultando o que se passava em algumas redacções de Lisboa, eu percebi a pergunta/desejo que andava no ar e em todas as cabeças: "Será desta que chegam ao Pinto da Costa? É que, se não chegam, nada disto tem verdadeiramente interesse." Ao terceiro dia, então, ultrapassando a questão central, todavia menor, da disputa entre o Gondomar e os Dragões Sandinenses, a imprensa lisboeta lá achou que já tinha terreno para explorar a "pista Pinto da Costa". Atente-se nas manchetes de ontem do PÚBLICO e do "Diário de Notícias".
O PÚBLICO: "Pinto da Costa e Sousa Cintra referenciados na investigação ao futebol" - (manchete de 1.ª página). E no título da notícia, na 2.ª página: "MP acusa Valentim de tráfico de influência a favor de Pinto da Costa e Sousa Cintra."
O "Diário de Notícias": "Ministério Público investiga ligações a obras do Governo" (manchete de 1.ª página). E, em subtítulo: "Valentim Loureiro terá usado influência para satisfazer pedidos de Pinto da Costa."
O que conclui um leitor desatento (e são esses que se pretende cativar com estas manchetes)? Concluiu que: a) - O MP já "acusa" Valentim Loureiro, que, assim, antes mesmo de ser ouvido, já era arguido e acusado (PÚBLICO); acusa-o de "tráfico de influências" a favor de Pinto da Costa e Sousa Cintra (PÚBLICO), embora sem especificar que tipo de tráfico de influências; ou, mais concretamente, acusa-o de tráfico de influências em obras públicas a favor de Pinto da Costa ("Diário de Notícias").
Agora, confronte-se o teor dos títulos com o das notícias de ambos os jornais: o que sobra de concreto é que o MP acusará, isto é, suspeita, Valentim Loureiro de ter tentado influir numa adjudicação de obras públicas a favor de Sousa Cintra - coisa que este, aliás, já desmentiu, dizendo nunca ter estado envolvido em obras públicas; e suspeita igualmente que o major terá tentado influir numa decisão da Comissão Disciplinar da Liga de Clubes, a favor de Pinto da Costa ou do FC Porto. Independentemente de saber se as suspeitas são fundadas ou não, é extraordinário que jornais de referência e jornalistas experimentados metam no mesmo saco e sob o sonante chamariz de "tráfico de influências" uma empreitada pública e um caso disciplinar do futebol. E que, à conta deste último, o principal das notícias referentes a esta tal "Operação Apito Dourado" se tenha concentrado num nome: Pinto da Costa! Sem me querer imiscuir nas funções dos provedores do PÚBLICO, Joaquim Furtado, e do "Diário de Notícias", José Carlos Abrantes, pergunto se isto não é um caso exemplar de uma suspeita expeditamente transformada em acusação, de uma deliberada confusão entre duas situações que são inconfundíveis do ponto de vista da gravidade penal e política e, enfim, de um desejo tomado por notícia?
Já agora, conviria esclarecer os leitores que, muito ajuizadamente, não seguem de perto a novela futebolística e os seus infinitos labirintos de qual poderá ser o nível do "tráfico de influências" desportivo entre Pinto da Costa e Valentim Loureiro. A referida comissão disciplinar, onde Pinto da Costa terá tentado exercer influências, é um órgão da Liga de Clubes - presidida por Valentim Loureiro, reeleito com a oposição expressa do FC Porto e com o apoio do Benfica, que, juntamente com o Boavista, divide os principais órgãos dirigentes, onde o FC Porto não tem qualquer representante nem influência. Essa comissão disciplinar é um órgão que se tem notabilizado por uma sanha disciplinar acirrada contra o FC Porto, ao ponto de cair no ridículo de ver todas as suas decisões especialmente reservadas a jogadores do clube serem sistematicamente revogadas e desautorizadas pela instância superior de recurso, que é o conselho de justiça, composto por juízes. Não vejo bem como é que Pinto da Costa (que até muito recentemente esteve de más relações com Valentim Loureiro) se rebaixaria a interceder junto dele para influir na decisão de um órgão que já sabe, à partida, que é sempre hostil contra o clube que dirige. Menos ainda vejo como é que um hipotético pedido nesse sentido poderia cair na alçada do crime de "tráfico de influências" e como é que isso poderá justificar a convocação do nome de Pinto da Costa para "lead" das notícias sobre a denominada "Operação Apito Dourado". Parece-me é que Pinto da Costa se transformou num apito entalado na garganta de quem não lhe perdoa o sucesso. E se o tal saneamento do futebol português não é levado a cabo, substituindo uma estafada e desacreditada geração de dirigentes dos órgãos institucionais do futebol, é porque a clubite lisboeta só aceita o saneamento se à cabeça vier o nome de Pinto da Costa. Por isso é que o Benfica se aliou a Valentim Loureiro, no coração do tão falado "sistema", na esperança de que juntos, a dirigir o futebol profissional, conseguiriam travar os sucessos desportivos do FC Porto. Sucede, porém, que o presidente de um clube privado só pode ser destituído pelos seus sócios e não por vontade dos seus inimigos ou da imprensa. É, de facto, um problema.
Mas não é só o envolvimento a ferros do nome de Pinto da Costa neste processo que caracteriza a cegueira da imprensa responsável. Levados por um entusiasmo que tem raízes patológicas na clubite desportiva que a todos toca, ninguém se deteve a pensar - como tantas vezes tem sucedido no caso Casa Pia - em "detalhes" do procedimento judicial que são preocupantes, tanto mais que tendem a tornar-se regra.
Desde logo, os sinais inequívocos de que estamos perante mais uma situação em que as pessoas são presas, não porque existam fortes suspeitas ou indícios de prova contra elas, mas sim na expectativa de que sejam a prisão e o interrogatório a fornecer esses indícios. Como se a detenção prévia do suspeito fosse, ela própria, um método legítimo de investigação.
Depois, o procedimento totalmente abusivo de deter para interrogatório pessoas que já se sabe só serão ouvidas daí a um ou dois dias - e não mais, porque a lei o não permite. A coisa não é inocente, de outra forma o juiz só assinaria o mandado de captura quando soubesse que tinha disponibilidade para ouvir de imediato o detido e confirmar ou não a prisão, conforme a lei e o Estado de direito estabelecem. O que se pretende com a estadia prévia na prisão é, desde logo, perturbar e abalar psicologicamente o suspeito, desacreditá-lo socialmente e em termos públicos se for alguém conhecido e, através do isolamento prévio, quebrar-lhe as defesas no interrogatório. Pode ser uma boa estratégia policial, até pode ser um método eficaz de chegar mais depressa à verdade, se ela for a da acusação, mas é um método ilegítimo e desleal.
Ainda e aonde a lei estabelece que o detido deve ser obrigatoriamente presente a um juiz no prazo máximo de 48 horas, a fim de ser ouvido e validada ou não a prisão, a juíza de Gondomar, incapaz de cumprir o prazo legal - porque prendeu os suspeitos antes de tempo -, resolveu interpretar a lei à sua maneira, substituindo a audição do preso por um "termo de identificação". Ou seja, foi como se dissesse: "O Sr. é Fulano tal, não é? Pois vai continuar preso até que eu tenha tempo para o ouvir." O patético advogado do major Valentim Loureiro - outro dos tais crónicos "cromos" do mundo do futebol, ele próprio ligado em tempos à arbitragem - acha que isto é perfeitamente legal e repete-o, com um ar muito contente, perante as câmaras de televisão, deixando-me a sensação de que, quanto mais tempo o major estiver "dentro", mais oportunidades terá ele de se ver na televisão.
E é pena, porque o que mal começa, mal acaba. E todo este fogaréu, ou muito me engano ou vai tornar-se numa oportunidade perdida para trazer à luz o que há de subterrâneo no mundo do futebol.
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 23 de Abril de 2004 no publico
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