A SCOLARIDADE OBRIGATÓRIASe as pessoas preferem a opinião única, as verdades oficiais, o coro afinado de vozes, talvez seja melhor dar-lhes isso mesmo. Até que, esmagadas por tanta felicidade, recomecem a ter saudades da liberdade.
Vivemos há 32 anos em democracia e com liberdade de imprensa e não me lembro de ter jamais assistido a uma tão impressionante campanha de promoção, culto e devoção de alguém como a que no último mês e meio foi dedicada ao seleccionador nacional, Luiz Felipe Scolari.
Não falo da enxurrada de elogios, legítimos, que, começados muito antes do Mundial, ainda se continuam a ler todos os dias na nossa imprensa. E não apenas na imprensa desportiva: não há Fulano nem Beltrano que escreva nos jornais que não tenha já assinado o livro de elogios a Scolari, como se isso fosse quase profissão de fé e de obediência obrigatória para quem escreve nos jornais. Assim como dantes se terminava obrigatoriamente qualquer requerimento ou comunicação oficial com a frase «A bem da Nação, viva Salazar!».
Não falo também da absoluta ausência de espírito crítico neste coro de elogios, que levava a que, por exemplo, se evitasse sugerir apenas que a Selecção tinha jogado mal determinado encontro, pois isso poderia passar por crime de lesa-pátria, ou que levou alguém com o passado de luta pela liberdade, como Manuel Alegre, a escrever que os críticos de Scolari eram portugueses que se davam mal com Portugal e que era contra eles também que a Selecção jogava.
Falo de uma coisa, pior, mais insidiosa, mais profunda e mais perigosa, que fui sentindo durante o último mês e meio, ao ponto de me trazer de regresso uma desagradável sensação de asfixia: o clima de intimidação, de ostracização, que se instalou contra os que chamavam os «críticos» de Scolari — entre os quais me incluí logo, antes que o fizessem. Não bastou aos adoradores de Scolari o elogio constante, repetitivo, por vezes mesmo bajulador: a par dos legítimos elogios vinha sempre, nos seus textos, um ataque cerrado aos «críticos», como se a sua própria existência fosse ilegítima. Ora, a este propósito, gostaria de fazer notar várias coisas, que antes tinha como evidentes:
— Qualquer seleccionador, em qualquer parte do Mundo, é sempre objecto de apreço ou de críticas. E a coisa mais natural de todas e, neste Mundial e apenas no que se refere aos mais mediati-zados, faço notar que foi isso que sucedeu com Domenech em França, Eriksson em Inglaterra, Lippi em Itália, Klinsmann na Alemanha, Parreira no Brasil ou Peckerman na Argentina.
— Porque terá o exercício da crítica, aqui como em qualquer outra área, a interpretação maldosa de que quem a faz deseja o pior? Porque não há-de ser antes ao contrário — que quem critica determinadas opções do seleccionador, se calhar, é porque deseja o melhor para a Selecção, mesmo que esteja errado nas suas críticas?
— O facto de se fazer uma crítica pontual (por exemplo, a escolha de Évora para local de estágio) não tem de implicar forçosamente que quem a faz se transforme desde logo num «crítico» permanente e institucional.
— Por melhor que sejam os resultados obtidos, não me parece que isso retire toda a legitimidade e até a razão às críticas que se formularam antes (é sempre mais fácil guardar a opinião para o fim,..). Por exemplo: reconheço, sem esforço, que Scolari é um grande condutor de homens e a sua opção de constituir uma Selecção onde só tem lugar quem ele já conhece leva a que se forme um grupo fechado e unido em torno do seleccionador, que muitas vezes, como foi agora o caso na Alemanha, conduz a resultados positivos. Mas com que legitimidade me podem impedir de continuar a pensar que a opção correcta não é essa mas sim a de formar uma Selecção com os melhores e tentar transformá-la num grupo homogéneo? Quem pode garantir que o Ricardo Quaresma não fez falta nos jogos contra a Inglaterra, a França ou a Alemanha? Ou que o Nuno Gomes ou o João Tomás não teriam feito melhor que o Pauleta?
— Enfim, e mais importante que tudo, que superioridade moral assiste a quem, com toda a ligeireza do mundo, acha normal fazer a associação automática e progressiva de crítico pontual do seleccionador = crítico sistemático = inimigo da Selecção = antipatriota?
O nacionalismo saudável, como aquele que se viveu na Alemanha, representado pelas cores das bandeiras, o hino, a língua, os hábitos e cultura, constitui uma manifestação festiva do sentimento de pertença a uma comunidade, a exibição pacífica e louvável de diferenças que se exprimem pela competição desportiva. Coisa diferente, e que nada tem a ver com isto, é a confusão deliberada entre futebol e patriotismo, sobretudo quando se chega ao ponto de exclusão, de marginalização ou de denúncia a dedo dos suspeitos de heterodoxia, dos que se desviam do unanimismo reinante, do pensamento único e obrigatório.
As páginas da nossa imprensa, neste último mês e meio, encheram-se de manifestações deste tipo de patriotismo álacre e acrítico que, sem exagero, confesso que me fizeram lembrar outros tempos. Dou um exemplo apenas: quando Fonseca foi escolhido como homem do jogo no Portugal-México, em detrimento de um português, escreveu-se que os homens sem rosto da FIFA, esses burocratas do futebol, se moviam por outros interesses que não os desportivos. E a indignação pátria atingiu o rubro quando, depois de ter defendido três penalties no desempate, Ricardo foi preterido a favor de Hargreaves. Ninguém, absolutamente ninguém, se deteve por momentos para explicar duas coisas simples: uma, que os tais burocratas e homens sem rosto da FIFA eram um comité de 14 elementos, todos antigas glórias dos Mundiais, entre os quais um tal Teófilo Cubillas, que foi simplesmente o melhor jogador que alguma vez vestiu a camisola do FC Porto e autor daquele que foi o melhor golo que alguma vez vi num estádio de futebol (na Tapadinha); outra, que o Ricardo não poderia ter sido escolhido homem do jogo pelas suas defesas no desempate por penalties pela simples razão de que esse desempate não faz parte do tempo de jogo. Tão simples como isto — e tão difícil de dizer!
Encerrado o Mundial, e fazendo-se o balanço de tudo o que se passou à sua volta, acho que também é altura de meditar sobre o jornalismo e a opinião pública. É o que vou fazer, agora. A mim, pessoalmente, nunca me intimidou o facto de estar em minoria. E aqui, nas páginas de A BOLA, sempre estive em persistente minoria. Mas houve qualquer coisa de diferente, desta vez. O tal desejo de unanimismo, a tal vontade subliminar de intimidação e silenciamento que me pareceu detectar a cada passo. Isso faz meditar e muda muita coisa: a vontade e o prazer de escrever, as bases do contrato de liberdade implícito entre quem escreve, quem publica e quem lê. Se as pessoas preferem a opinião única, as verdades oficiais, o coro afinado de vozes, talvez seja melhor dar-lhes isso mesmo. Até que, esmagadas por tanta felicidade, recomecem a ter saudades da liberdade.
(Digitalizado da edição em papel da Abola)