Como era de esperar, a imprensa lisboeta já se atirou às canelas e ao destino do Ricardo Quaresma, como pittbull à garganta de uma criança. Querem por força que ele se vá embora esta época. Querem, acima de tudo, vê-lo longe do FC Porto. Eu compreendo-os: é o sonho de qualquer benfiquista ou sportinguista, jornalista ou não. É assim ciclicamente com todos os grandes jogadores do FC Porto, os que desequilibram campeonatos a favor do norte: Anderson, Pepe, Deco, McCarthy, Ricardo Carvalho, etc, etc. Em Novembro e por esta altura do ano, é fatal que se relance uma campanha muito pouco subtil, cujo mote é sempre o mesmo: «O FC Porto não vai poder segurar o jogador». Se o jogador em causa não sai no «mercado de Inverno», como eles tanto desejavam, tratam logo de reforçar a campanha para se certificarem de que sai no Verão. A insistência no mote da campanha leva as três partes envolvidas — jogador, direcção do clube (leia-se Pinto da Costa) e sócios — a tomarem como inevitável a saída. E, quando o inevitável se transforma, enfim, em certeza, os instigadores suspiram de alívio. Esta é a primeira coisa que eu queria dizer agora ao Quaresma: a sua saída «inevitável», já, já, no próximo Verão, faz parte de uma campanha montada pelos adversários do FC Porto. Isso, por si só, não pode determinar a sua decisão — que será sempre legítima — mas é bom que tenha consciência disso.
Conheci o Ricardo Quaresma há cerca de três anos, no Porto. Eu estava a cear com o meu grupo de «amigos das scooters», depois de regressarmos de um jogo no Estádio do Dragão, onde, mais uma vez, o Co Adriaanse tinha deixado o Quaresma no «banco», com o aplauso de grande parte da crítica — a mesma que agora só quer é vê-lo pelas costas. Ao contrário, eu já tinha escrito aqui algumas vezes que entendia que deixar um génio como ele no «banco» era uma decisão prepotente e idiota. Sempre me afligiram os treinadores que têm medo dos jogadores talentosos e lhes preferem os tacticamente disciplinados. Por coincidência, a discussão na mesa, entre uma dúzia de portistas ali reunidos, era exactamente acerca disso e eu estava em minoria: a maioria concordava com Adriaanse — que o Quaresma não defendia, que era vaidoso, indisciplinado, individualista, sem sentido de jogo colectivo e por aí fora. E eu, que sempre insisti em ter uma noção talvez demasiado romântica do futebol, respondia que o génio não tem de prestar tributo nem ao colectivo nem à disciplina, ou não seria génio. E eis que se chega à mesa um outro portista que eu conhecia de outras andanças e me vem dizer ao ouvido que, na sala ao lado, estava o Ricardo Quaresma, que me queria falar. E lá fui, sem dizer nada à mesa. Encontrei-o em pé, virado contra uma parede, como se tivesse vergonha do mundo. Começou por me agradecer o que tinha escrito sobre ele, dizendo que era quase a única pessoa a defendê-lo, mas que o seu desespero e desmotivação por estar afastado do campo era tanto que só pensava em ir-se embora. Obviamente, respondi-lhe que tivesse paciência, que não tinha uma dúvida que a sua hora iria chegar e que, nesse momento, ele deveria estar preparado para dar a resposta em campo, porque ele era o melhor jogador do FC Porto e a verdade vem sempre ao de cima. Mas impressionou-me tanto a sua humildade, o seu ar de criança a quem tinham roubado a bola para jogar, que não resisti a pedir-lhe que viesse comigo até à mesa, para lhe apresentar uns amigos. Ele foi e demorou-se uns minutos, os suficientes para que a sua timidez tivesse impressionado todos, e para que, quando se foi embora, eu pudesse perguntar, triunfante:
— Então, continuam a achar que um dos defeitos dele é ser vaidoso?
Dois meses depois, e em estado de necessidade, Co Adriaanse decidiu-se a meter o Quaresma em jogo por três vezes consecutivas, embora nunca a mais de vinte minutos do fim: e, das três vezes, o Quaresma resolveu-lhe três jogos que estavam emperrados. Daí até aqui, foi o que se sabe, embora, pelo caminho, ainda tenha tido de enfrentar a pesporrência do selecionador Scolari, que o deixou de fora do Mundial da Alemanha, no ano em que foi considerado pela crítica o melhor jogador do campeonato português, e a perseguição da Comissão Disciplinar da Liga, que insistia em ver nele um troglodita (como agora querem fazer do Bruno Alves). Daí até aqui, o Quaresma melhorou ainda muito mais o seu futebol e aprimorou o seu talento natural — porque, ao contrário do que os medíocres imaginam, o talento dá muito trabalho. As trivelas, os cruzamentos «de letra», a cobrança de livres, as fintas sobre dois adversários simultaneamente, tudo isso foi aprimorado por ele, inevitavelmente em horas extras de treino. E não é por acaso que é dos últimos a rebentar em campo, apesar de ser o mais massacrado jogador do campeonato português e da Liga dos Campeões. Juntou ao génio a seriedade profissional e só os ingratos ou ignorantes é que são capazes de achar que um génio tem de estar sempre inspirado e, por isso, são capazes de assobiar o Quaresma se as coisas não lhe saem brilhantes, mas acham natural que um jogador banal falhe habitualmente coisas banais. E por isso é que ele vale 40 milhões menos um euro, como disse Pinto da Costa e como eu escrevi aqui há tempos: dez milhões pelo seu futebol, outros dez pelo seu profissionalismo, mais dez pelo espectáculo à parte que proporciona e mais dez pelas receitas que o FC Porto perderá depois de o perder.
Compreendo que lhe assalte a tentação de experimentar o topo do Everest, onde o futebol são sempre estádios cheios, espectáculo garantido e ordenados de sonho. Mas comecemos por aqui: não sei quanto é que Ricardo Quaresma ganha no FC Porto, mas, se ganha menos de 125.000 euros por mês, dou-lhe já razão: comece por exigir isso, porque o merece. Se ganha isso ou próximo, então, pense bem: a vida em Espanha é duas vezes mais cara, em Itália três vezes, e em Inglaterra quatro — e, por aí, os impostos são a sério. E, depois, pense no seguinte: já não tem 18 anos, como tinha o Cristiano Ronaldo quando foi para o Manchester United, e só lá é que existe um Sir Alex Ferguson, que tem a ciência, a paciência e os meios para transformar meninos em grandes jogadores. Se sair agora para um dos tubarões europeus, o Quaresma vai enfrentar um grau de exigência imediata a que não está habituado — e ele deve saber o que isso é, porque já viveu a experiência no Barcelona e com resultados frustrantes que o levaram ao FC Porto. Por aqui, costuma dizer-se, e com razão, que o Sporting é o grande descobridor de talentos — (e um eles, não se cansam de lembrar os sportinguistas, é o próprio Ricardo Quaresma). É verdade, sim senhor. Mas, se o Sporting descobre talentos em idade juvenil, quem os transforma em grandes jogadores é o FC Porto. Se o Sporting descobriu o Quaresma, quem o «fez» foi o FC Porto. Como fez o Deco, o Maniche, o Ricardo Carvalho, o Pepe e tantos outros. No FC Porto (eu sei porquê, mas não o digo), até um jogador banal se transforma num bom jogador. O Ricardo Quaresma deve meditar se vale mais ser conde no exílio ou Príncipe na Pátria. Até, porque — último argumento — a Pátria tem coisas que lá fora não vai encontrar. Tais como cervejarias onde, depois dos jogos, os admiradores de bancada não lhe vão cobrar o golo falhado contra o Schalke, mas sim agradecer todos os instantes de puro prazer que lhes deu. Fica-lhe tão bem o azul-e-branco, Ricardo! Pense nisso, antes de escutar o canto das sereias.