domingo, maio 09, 2004

A montanha de papel

Se há coisa notável que eu reconheço ao "Expresso" é a sua incoerência congénita: se Maomé não vem à montanha, é a montanha que vai ter com Maomé. Ou seja: se Valentim Loureiro atrapalha o PSD é porque Pinto da Costa o subornou com um relógio de 30 contos


MANUEL TAVARES

Com o título que hoje vai conquistar, em 22 anos que leva de presidência, Pinto da Costa proporcionou aos prosélitos portistas 13 campeonatos nacionais, 13 supertaças e oito taças de Portugal. Aos adeptos do futebol português ofereceu o orgulho de uma Taça dos Campeões Europeus, uma Supertaça Europeia, uma Taça Intercontinental e uma Taça UEFA. Além disso, ainda está a tempo de, a exemplo do que aconteceu na época passada, conseguir bisar o pleno dos objectivos desportivos possíveis se ganhar a final da Taça de Portugal ao Benfica e a final da Liga dos Campeões ao Mónaco.

Esta lista de feitos desportivos deveria ter um valor superior ao da imunidade parlamentar ou do passaporte diplomático com que pequenos e grandes ladrões conseguem evitar sentar o rabo no banco dos réus. Ainda esta semana houve um desses passaportes diplomáticos que passou por Lisboa e por Londres sem ser detido, apesar de ter as polícias do mundo inteiro no encalço.

Ao longo da semana, vimos também em todas as têvês imagens de tortura a prisioneiros iraquianos que arrasam com as próprias regras da guerra, queimam a Declaração Universal dos Direitos do Homem e nos envergonham de tal modo a alma que o chamado mundo ocidental já nem sequer pode refugiar-se no campo do antiamericanismo porque a perversão é tamanha que não consente diferenciações ideológicas, políticas ou geo-estratégicas.

Mas, como sabem, ontem foi sábado, dia do "Expresso". Não é fácil evitar aquela montanha de papel. Até porque, depois, levamos com a SIC, que fraternalmente promove as notícias do semanário-irmão. Finalmente, sempre atentas aos produtos que vendem audiências, as outras têvês acabam por entrar na procissão. Pela noitinha, só há uma forma de não adormecer a contar andores: Canal Hollywood.

Confesso-vos que o meu sábado de ontem não foi fácil. Cheguei a pensar que os passaportes da ladroagem diplomática e o sadismo de guerra me tinham cegado e já não enxergava o obviamente importante. E que, finalmente, o "Expresso" iluminava o meu espírito com uma primeira página sem margem para dúvidas: "Pinto da Costa chamado a depor... e Valentim atrapalha festa do PSD". O texto que aguentava tamanho título era um hino ao jornalismo sem nome: "Uma fonte da PJ do Porto disse ao Expresso que a hipótese de deter Pinto da Costa para interrogações foi 'seriamente considerada'...".

Se há coisa notável que eu reconheço ao "Expresso" é a sua incoerência congénita: se Maomé não vem à montanha, é a montanha que vai ter com Maomé. Daí que, tendo percebido que a montanha de papel tinha parido um rato, assaltou-me a curiosidade de ir à procura dos antecedentes... E não é que foi fácil encontrá-los! Escarrapachadinhos na montanha de papel da semana passada: Pinto da Costa sob escuta e investigado por ter tentado comprar os favores da Comissão Disciplinar da Liga subornando o major Valentim Loureiro com a oferta de um relógio no valor de 30 contos.