terça-feira, julho 20, 2004

Miguel Sousa Tavares

Escrita em dia

O Euro-2004, tal como qualquer outra megarrealização como esta,
compõe-se de duas partes: a festa e a factura. Nunca fui contra a festa,
fui sempre contra a factura. Para os «patriotas» das bandeirinhas a
questão é, seguramente, indiferente. Para os patriotas que pagam
impostos não o é



1- Tinha avisado os leitores de que iria afastar-me uma semana desta
coluna, mas circunstâncias outras fizeram com que essa ausência afinal
se prolongasse por duas semanas. E, se entendi fazer esse aviso
previamente é porque sabia que, sem ele, o meu silêncio subsequente
poderia ser interpretado como fuga, por parte de quem sempre se
manifestou contra o Euro desde a primeira hora e contra Scolari desde há
muito. Perante o êxito, real ou forçado, de um e de outro, sabia que
haveria fatalmente quem ficasse a pensar «o tipo, agora, achou mais
prudente calar-se». Bruxo: vinha no avião, de regresso do Brasil a
Portugal, e lium artigo do António Tavares-Teles onde ele se perguntava
que era feito dos criticos do Euro, que estavam todos em silêncio. Dos
outros não sei, mas de mim, sabe o António que não sou pessoa de ficar
em silêncio perante as responsabilidades e que só circunstâncias mais
fortes do que eu me impediriam, como impediram, de falar na hora certa.
Mas, embora tarde, não fujo ao desafio. O Euro-2004, tal como qualquer
outra megarrealização como esta, compõe-se de duas partes: a festa e a
factura. Nunca fui contra a festa, fui sempre contra a factura. A festa
foi maravilhosa, melhor do que as melhores expectativas — que, aliás,
nunca pus em causa. Ao contrário de outros, nunca me pronunciei, por
falta de conhecimento, sobre as expectativas relativas à parte
organizativa do Euro. Ouvi dizer que os aeroportos não iriam dar conta
do tráfego aéreo, que os acessos aos estádios não iriam estar prontos,
que a segurança não conseguiria dar resposta aos problemas, etc e tal:
nunca cavalguei essa onda, nunca fiz uma previsão sobre o assunto,
limitei-me a esperar para ver. E, tendo visto, acho que é de toda a
justiça reconhecer que a organização foi fantástica, o ambiente fabuloso
e a festa magnífica. Mesmo sob o aspecto meramente desportivo, o Euro
foi muito melhor jogado do que eu esperava, muito embora — e, isso, sim,
previ—as grandes selecções tenham feito uma triste figura, em resultado
da saturação das suas principais vedetas: França, Espanha, Itália e
Inglaterra despediram-se cedo do Euro, deixando para trás a imagem de
Zidane, Beckam, Raul arrastando-se em campo, desesperadamente gritando
por férias. E a Taça acabou entregue à Grécia, assim uma espécie de
Boavista da Europa, que nenhum europeu acredita possa ser a melhor
selecção europeia. Agora, vamos à factura. Se a festa fosse dada pelo
rei dos ciganos ou, digamos, pelo eng. Belmiro de Azevedo, tido como o
homem mais rico do País, eu não teria nada a ver com o assunto: o
dinheiro era deles, que fizessem o que quisessem. Mas, quando a festa é
feita pelo Estado, isso significa que é feita com o meu dinheiro e o dos
restantes pagadores de impostos, e aí tenho tudo a ver com o assunto.
Porém, não tenho nenhuma posição de princípio contra as festas feitas e
pagas com o dinheiro do Estado: fui a favor da Lisboa-Capital da
Cultura, do Porto-Capital da Cultura e entusiasticamente a favor da
Expo-98. Porquê? Porque o investimento feito nas festas se prolongava
para além delas e constituía até uma oportunidade de recuperação urbana
e investimento produtivo. Justamente por estas razões é que fui desde o
princípio —desde que tive oportunidade de ler, antes de todos, o caderno
de encargos do Euro-2004 — um adversário, de cidadania, desta festa. Sem
dúvida, Portugal teve uma grande projecção mediática com o evento (não
sei se tanta que compense o próprio investimento feito na promoção...),
sem dúvida, todo o sector da restauração teve um mês de prosperidade
como nunca, mas a minha dúvida é se será legítimo que o Estado gaste
centenas de milhões de contos (os outros números, os do ministro Arnaut,
são conversa para papalvos...) para beneficiar um só sector da vida
económica do País. O turismo e a restauração saíram a ganhar, sem
dúvida, mas agora é altura de pagar a conta. Há seis estádios,
construídos pelas autarquias e que, segundo um estudo divulgado pelo
jornal Público, demorarão dez anos a pagar, que em alguns casos
representaram a totalidade das verbas anuais de investimento da
respectiva autarquia e que, ou o Estado central cobre as dívidas ou as
autarquias que sedearam estádios para o Euro ficarão durante muito tempo
sem verbas para investir nas políticas de habitação, de equipamentos
sociais, de apoio à juventude ou terceira idade. E há seis estádios,
financiados pelo Estado, via autarquias, de que nem um só cumpriu o
respectivo orçamento (a obra-prima de Braga, por exemplo, custou só três
vezes mais do que o previsto...) e de que nem um só tem expectativas de,
uma vez que seja nos anos mais próximos, justificar a sua capacidade de
30 mil lugares ou de gerar receitas que consigam cobrir a respectiva
manutenção. Ou seja, ficámos com seis elefantes brancos para pagar e
para sustentar no futuro – à custa de dinheiros públicos, não certamente
dos clubes usufrutuários. Para os patriotas das bandeirinhas, a questão
é, seguramente, indiferente. Para os patriotas que pagam impostos, não o
é.

2- E a Selecção? Scolari e os outros 23 heróis da Pátria, condecorados
como tal pelo Presidente da República? Pois, o que acho é que tiveram
condições como nenhuma outra Selecção Nacional jamais teve: país
organizador, com todos os apoios, explícitos e implicitos, daí
tradicionalmente decorrentes; dispensados da qualificação e de jogos a
doer, durante dois anos; apoiados por um país inteiro, em estado de
euforia; prémios de jogos, contratos publicitários, mordomias todas;
imprensa rendida, aliada e acrítica; calendário de jogos garantindo
sempre mais tempo de repouso entre jogos do que o dos adversários:
enfim, tudo, rigorosamente tudo, a favor, como jamais. Balanço final:
ganharam três jogos, empataram um e perderam dois. Heróis nacionais?
Porque não, agora que tudo parece tão fácil – chegar ao poder ou ser
herói?

3- Scolari demorou dois anos e precisou da derrota inicial contra a
Grécia para perceber o que já todos tinham percebido: que a sua selecção
estava errada. Na iminência do descalabro, só lhe restava mudar tudo e
mudou: passou a ser tido como um génio, porque tinha visto a necessidade
de mudar – embora depois de toda a gente. Tendo mudado e tendo passado a
ganhar, achou que o assunto estava resolvido e que nunca mais precisaria
de voltar a mudar. Jogou contra a Grécia como tinha jogado contra a
Holanda, a Inglaterra ou a Espanha. Achou que a receita era universal,
como já antes havia sido a receita oposta. Que não era preciso estudar o
adversário nem adaptar-se a ele. Otto Reaghel fez o inverso, fez o que
lhe competia: estudou a segunda versão da selecção de Scolari, certo de
que ela não traria novidade alguma, e manietou-a por completo. Tornou
Portugal impotente e conseguiu que a pior equipe ganhasse o jogo e o
Campeonato: eis um treinador a sério. Scolari ficou com a Ordem do
Infante e com o sorriso orelha-a-orelha dos brasileiros, a quem
perguntei a sua opinião sobre o mestre: «Fiquem com ele, por amor de
Deus, fiquem com ele!»

4- No Brasil, onde estive a semana passada, perguntei também pelas novas
aquisições feitas ou a fazer pelos clubes portugueses. O «meia» Paulo
Almeida, que o Benfica foi buscar, «não vale grande coisa». Luis
Fabiano, que se diz cobiçado pelo FC Porto é uma fraca versão de Roberto
Dinamite: ora dá, ora não dá, mas não sabe jogar de cabeça. Já Diego –
que o FC Porto igualmente cobiça, mas que não irá conseguiré
unanimemente tido como o grande jogador brasileiro do futuro, «um novo
Zico», a quem só lhe falta aprender a jogar sem olhar para a bola.
Entretanto, há um brasileiro novo na estima local: chama-se Deco,
viram-no em Gelsenkirchen e viram-no no Euro e perguntam-se como é que
Filipão não o viu para a Selecção doBrasil. Em Paraty, cidade histórica
de apenas quatro mil habitantes, vi três locais com a camisola do FC
Porto e duas delas tinham nas costas o nome de Deco. Para o ano vão ter
de vender em Paraty camisolas do Barcelona.

5- Ricardo, o guarda-redes da Selecção, prossegue o seu ajuste de contas
pessoal. Depois da lastimável entrevista dada antes do Euro, cheia de
insinuações sem destinatário concreto, eis que chega agora um livro de
desabafos, onde o substancial parece ser uma página onde ataca Vítor
Baía. Forte do único dos seis penalties que conseguiu defender no
desempate contra a Inglaterra, acha-se no direito de atacar ainda quem
não se pôde defender em campo. Baía foi um senhor na forma como encarou
o seu afastamento da Selecção e do Euro – que, como o Ricardo bem sabe,
teve origem em tudo menos no mérito e na justiça. Bastaria ao Ricardo,
depois de ver afastado o seu rival por obscuras razões, ter tido uma
simples palavra dizendo que seguramente Baía tinha lugar entre os três
melhores guarda-redes seleccionáveis: teria saído da controvérsia em
grande, como Baía saiu. Mas, não, parece que a sombra ainda o atormenta.
E com razão, afinal: será que o Baía teria permitido aquele cabeçeamento
dentro da pequena área que deu o Euro à Grécia?