terça-feira, julho 27, 2004

Miguel Sousa Tavares

A nova época do campeão europeu

Basta ler a imprensa desportiva lisboeta para qualquer incauto concluir que o campeão nacional e o campeão europeu em título não é o FC Porto — sistematicamente arrumado numa notícia de rodapé de cada primeira página —mas sim o glorioso Benfica, que esmaga, dia após dia, todas as manchetes dos jornais

1. Reinaldo Teles tem toda a razão. Alguma coisa vai mal num país onde se condecoram os vencidos e se ignora os vencedores. Portugal — convém recordá-lo — não foi campeão europeu: com tudo a seu favor, deixou-se bater na final jogada em casa. Mas o FC Porto— convém recordá-lo, porque parece que já ninguém se lembra — foi campeão europeu, desafiando potentados futebolísticos, que são verdadeiras multinacionais de jogadores e de que uma dúzia deles, pelo menos, são bastante melhores, como equipas do que qualquer Selecção das que estiveram em Portugal. E, já agora, convém também lembrar que a equipa do FC Porto que se sagrou campeã europeia entrou em Gelsenkirchen com nove jogadores portugueses no onze inicial. Mas Jorge Sampaio, que se comoveu até às lágrimas ao condecorar a equipa de Scolari, ignorou por completo a equipa de José Mourinho, que conseguiu para Portugal uma proeza que o país há muito não registava em nenhum outro sector da vida pública. Mas Jorge Sampaio não está sozinho, no seu critério particular de justiça. Basta ler a imprensa desportiva lisboeta para qualquer incauto concluir que o campeão nacional e o campeão europeu em título não é o FC Porto — sistematicamente arrumado numa notícia de rodapé de cada primeira página — mas sim o glorioso Benfica, que esmaga, dia após dia, todas as manchetes dos jornais. Houve apenas um brevíssimo intervalo de dois dias, nesta monotonia noticiosa dos últimos tempos: o dia da final de Geselkirchen e o dia seguinte à vitória. Logo depois, regressou-se à normalidade.

2. No território das expectativas — que é onde o Benfica tem vivido nos últimos 10 anos — esta época do defeso é sempre uma época gloriosa para o Benfica. As aquisições são sempre excelentes, os treinadores fantásticos, o ambiente inultrapassável, os estágios fabulosos, jogadores que na época anterior nada fizeram de jeito revelam-se outros radicalmente diferentes para melhor, e todos, sem excepção, mostram-se encantados com o estágio e os métodos de preparação e prontos para uma época de arraso. À força de lermos isto, ano após ano, nós, os que estamos de fora, já não sabemos que Benfica esperar em cada época. A mim acontece-me sistematicamente enganar-me, para mais ou para menos, em relação àquilo que penso que irá valer o Benfica em cada época. Nesta, por exemplo, dá-me ideia, pelo pouco que vi, que o Benfica está melhor e mais bem servido de treinador do que na época passada. À boleia de José Mourinho e do FC Porto, fez um grande negócio com a venda de Tiago ao Chelsea, mas não me parece que ele faça muita falta, sendo que ainda é de esperar, como anunciado, um reforço para o meio-campo e outro para o ataque. Só não percebi para que quis o clube ter três bons guarda-redes, quando só um é que irá jogar regularmente. Mas gostei do que vi contra o Real Madrid, muito embora se espere que não venha a encontrar ao longo da época árbitros tão amigos como o Bruno Paixão, justissimam ente escolhido para participar na festa do centenário benfiquista.

3. Quanto aos campeões europeus, pois lá fechámos o negócio tão longamente esperado com o Diego. Eu cá dei uma forcinha, com uma provocação que aqui escrevi a semana passada e destinada, exactamente, a produzir o efeito desejado. Espero agora que se confirmem todas as referências elogiosas que ouvi fazerem-lhe no Brasil, porque, se assim for, com dois miúdos como ele e o Carlos Alberto, as saudades do Deco vão ser mais fáceis de passar. Entretanto, e como era de prever, os campeões europeus têm fechado inúmeros e bons negócios. A venda do Paulo Ferreira foi simplesmente fabulosa, a do Deco foi razoável ou boa, se o Quaresma passar de promessa a realidade. As saídas do Pedro Mendes e do Alenitchev, por razões diferentes, acabaram também por ser razoáveis, como bem razoável seria a saída do Costinha, para cujo lugar se comprou o Paulo Assunção e onde existe um outro jogador que vem subindo de qualidade a olhos vistos mas sem grandes oportunidades fora da Selecção dos sub-23, e que é o Bosingwa. Em matéria de aquisições, para além do Diego, a grande esperança e a grande aquisição do defeso, para além do Paulo Assunção e do Ricardo Quaresma, sobre quem recaem grandes esperanças, as aquisições do Seitaridis, do Rossato e do Pepe parecem excelentes. Já as outras, tenho mais dúvidas. O Raul Meireles até agora ainda não consegui perceber o porquê de tantos elogios. O Postiga continua a ser um grande jogador mas a quem continua a faltar a capacidade finalizadora e, sobretudo, não sei para que quer o FC Porto cinco pontas-de-lança, mais o supranumerário Pena. E quanto ao Areias, para além de ser o quarto lateral-esquerdo no plantel, francamente não se entende para que se continua a comprar jogadores directamente para a equipa B ou para serem emprestados. Aliás, os meus leitores mais atentos já sabem que a grande crítica que eu faço sempre à política de aquisições do FC Porto é o exagero delas. Entendo que manter plantéis profissionais que, mesmo depois de uma dúzia de empréstimos, continuam a ter mais de 30 jogadores, para além de financeiramente ruinoso, é prejudicial e não benéfico para a equipa.

4. No que ao FC Porto diz respeito, tudo visto, somado e subtraído—e mesmo mantendo-se em aberto a hipótese de ainda vir a sair um dos dois «grandes», Ricardo Carvalho ou Maniche — o saldo do defeso é francamente positivo. O FC Porto perdeu dois grandes jogadores mas recebeu quatro ou cinco que à partida são também grandes jogadores. E, entre compras e vendas, deve ter saído para já a ganhar uns vinte e cinco milhões de euros, o que representa metade do orçamento anual. Entretanto, o FC Porto perdeu o principal: um treinador da categoria de José Mourinho. Costuma dizer-se que ninguém é insubstituível, mas ele, de facto, é. Não vale a pena passarmos a época a chorar por ele mas convém que todos estejam conscientes de que acabou mesmo um período glorioso, que se deveu, acima de tudo, a José Mourinho. Del Neri, obviamente, não tem culpa alguma disso, pode até vir a revelar-se um excelente treinador, mas a tarefa que tem pela frente é avassaladora. É muito cedo, estupidamente cedo, para fazer qualquer apreciação crítica e gostava que o que vou dizer nem sequer soasse como uma crítica, mas, pelo que tenho visto e lido, temo que ele esteja desnecessariamente a tornar ainda mais difícil a sua tarefa, com tantas alterações profundas numa equipa que basicamente estava estruturada e rotinada num tipo de jogo que se revelou de sucesso total. Comecemos pela defesa em linha, que ele intenta implantar, quase à força, na defesa azul e branca. É um sistema de que eu não gosto à partida, porque diminui a área de jogo, proporciona inúmeras interrupções por offsides, tornando o futebol mais feio e sem espaço. Depois, é um sistema perigoso, porque basta uma fracção de segundo de distracção de um defesa ou do juiz-de-linha e facilmente se sofre um golo, que seria evitável com o sistema de marcação à zona. Enfim, numa equipa como o FC Porto, com dois centrais de marcação tão bons como o Ricardo Carvalho e o Jorge Costa, a defesa em linha não tira partido das suas qualidades e, inversamente, exige-lhes outro tipo de jogo para o qual não estão rotinados nem vocacionados. Depois, temos o 4x2x4, que Del Neri anunciou logo à partida, que era e iria continuar a ser o seu sistema de jogo. Ora, eu não tenho nada contra o 4x2x4 ou contra esquemas de jogo ofensivos, antes pelo contrário. Mas parece-me que um treinador, embora possa ter o seu sistema de jogo favorito e procure pôr as suas equipas a jogar no seu sistema, deve ter a flexibilidade suficiente para perceber quando é que isso é possível e aconselhável e quando não o é. Ou seja, é o modelo de jogo que se deve adaptar à equipa e às características dos seus jogadores e não o contrário. Mourinho, por exemplo, era um grande defensor do 4x3x3, que começou por pôr em prática no FC Porto. Mas, quando perdeu os alas Capucho e César Peixoto, mudou o sistema para o 4x4x2, com o célebre losango do meio-campo. Ora, sucede que para jogar no 4x2x4 que pretende, Del Neri precisa de ter, pelo menos, dois grandes médios-alas. E não tem sequer dois grandes alas: Quaresma é uma incógnita, César Peixoto mais ainda e Maciel, tirando o jogo de estreia na equipa, é uma continuada decepção. Mas, mesmo que qualquer deles se viesse a mostrar em grande forma, nenhum deles é um médio-ala, como exige o modelo de Del Neri: todos são apenas extremos clássicos, que nada acrescentam ao meio-campo. Em contrapartida, o esquema exigiria ainda o incompreensível sacrifício de Carlos Alberto e, agora também, o de Diego. Seria uma equipa sem número 8 e sem número 10 — logo por acaso, as duas grandes esperanças desta equipa. Espero que o assunto tenha sido falado entre o treinador e os dirigentes, antes do investimento feito no Diego. E espero, em consequência, ver como é que Del Neri vai aproveitar a excelente matéria-prima de que dispõe. A grande confusão táctica que foi aquele jogo com o Woleren, em que ninguém parecia saber qual era o seu lugar e a sua função em campo, exigem certamente alguma meditação profunda.