quarta-feira, novembro 23, 2005

MIGUEL SOUSA TAVARES


Eles existem, os génios

E, depois, existem os génios, os predestinados, aqueles que não nasceram para mais nada que não rigorosamente para jogar futebol. Este sábado vi dois génios do futebol em acção, um ao vivo no estádio e outro pela televisão: Ricardo Quaresma, no Dragão, e Ronaldinho Gaúcho, em Chamartin.

COMO em todas as outras áreas da actividade humana, também no futebol existem várias espécies de praticantes: os maus e os medíocres, que, por pudor ridículo, nunca são classificados como tal; os banais e os razoáveis, muitas vezes confundidos com grandes jogadores; e os bons e muito bons, que mal tocam na bola se distinguem dos demais. E, depois, existem os génios, os predestinados, aqueles que não nasceram para mais nada que não rigorosamente para jogar futebol. O maior génio que alguma vez vi pisar um campo de futebol chamava-se Johan Cruyff, era holandês e deslumbrou no Ajax e no Barcelona. Nos tempos em que ele jogava em Espanha eu ia ao fim-de-semana de Lisboa a Monsaraz para o ver jogar na televisão espanhola, que se captava junta à fronteira. E valia a pena. Este sábado vi dois génios do futebol em acção, um ao vivo no estádio e outro pela televisão: Ricardo Quaresma, no Dragão, e Ronaldinho Gaúcho, em Chamartin. Mas vamos por partes.

1- Sp. Braga-Benfica. Depois da paupérrima exibição contra o Marítimo, o Sp. Braga puxou dos galões de líder do campeonato e fez pela vida face a um Benfica que voltou a cometer o mesmo erro de Manchester: começar a defender o resultado ainda na infância do jogo. Pelo que se viu, apenas o Sp. Braga poderia e mereceu ter ganho; o Benfica, ao contrário do que havia feito no Dragão, limitou- se a esperar pela sorte grande. Dois minutos depois da hora pareceu repetir-se o fado do campeonato passado: João Ferreira resolveu ver um penalty que ninguém mais viu e nenhum jogador do Benfica se atreveu a reclamar. Foi uma machadada no benfiquismo das gentes de Braga e a demonstração do ditado que reza «amigos, amigos, negócios à parte». Mas, três minutos volvidos (dos oito de prolongamento dados pelo árbitro!), o Sp. Braga repôs a verdade, através de um golo obtido não em fora de jogo mas irregular, porque o seu marcador arrancou para a jogada em fora de jogo. Houve logo quem, pressurosamente, dissesse que um erro compensava o outro, uma interpretação muito bondosa: o offside foi daqueles que só se detectaram após visionamento em câmara lenta, um erro perfeitamente justificável do fiscal de linha; o penalty foi uma injustificável decisão do árbitro, aliás tardiamente assinalada. No mais, restou aquele gesto de Nuno Gomes, que as câmaras de televisão inadvertidamente captaram, após o golo da vitória do Sp. Braga, e em que ele insinuou que os adversários estariam dopados. Que fará do significado desse gesto a douta Comissão Disciplinar da Liga— vai investigar a veracidade da insinuação, vai obrigar o Nuno Gomes a fazer prova do que insinuou ou vai fingir que não viu? Aposto na última.

2- FC Porto-Académica. Passaram a semana inteira a jurar-nos que não restaria um único bilhete por vender no Sp. Braga-Benfica. Ia ser a maior assistência de sempre no sumptuoso palco desenhado por Souto Moura — os de Braga, eufóricos com a carreira da equipa local, mais as multidões que o Benfica sempre arrasta: 30.100 espectadores no total. Afinal, promoção à parte, foram 21.449 espectadores em Braga e 30.108 no Dragão, para um jogo banal. Desta vez o ataque azul funcionou, foram cinco golos, deveriam ter sido quatro, poderiam ter sido seis ou sete. Houve um golo invalidado ao FC Porto e outro (o terceiro da série, a 19 minutos do fim) validado sem a bola ter entrado. Mas tudo se resumiu a uma questão de números, mais um menos um, nada que tenha que ver com o desfecho ou a justiça do triunfo azul. Lamentável, por isso mesmo, que à saída, na rádio, tenha tido de ouvir Nelo Vingada a declarar que perdeu graças às «ajudas da arbitragem» de que o FC Porto terá beneficiado. Não é a primeira vez que o vejo lamentar-se nestes termos, e com a mesma falta de razão e sentido das coisas, após perder com o FC Porto. Será uma questão pessoal, uma aversão ao azul? Teria sido mais bonito se Nelo Vingada, por exemplo, tem justificado a derrota com o tremendo desconcerto que as arrancadas, os toques de calcanhar, os cruzamentos, os golpes de génio de Ricardo Quaresma lançaram na retaguarda coimbrã. Não é para isso, também, que os treinadores de futebol deveriam servir — para elogiarem e chamarem a atenção para o que o futebol tem de luminoso, de entusiasmante? Se o tem feito, além do mais, poderia ter contribuído com a sua parte para tentar evitar nova injustiça que o seleccionador nacional prepara: deixar Quaresma de fora do Mundial da Alemanha.

3- A 750 quilómetros dali, em Madrid, Vanderlei Luxemburgo, vergado ao peso de uma humilhante derrota caseira contra o rival de sempre, teve, mesmo assim, a nobreza de atitude de prestar homenagem ao homem que acabara de destroçar o Real: Ronaldinho Gaúcho, o melhor jogador do Mundo na actualidade. Há uns anos atrás assisti em Chamartin a outra noite em que outro prestidigitador ao serviço do Barcelona, de seu nome Rivaldo, liquidou o orgulho merengue a golpes de puro génio. A diferença é que, nessa noite de então, incapazes de reprimir o ódio visceral pelos da Catalunha, os espectadores do RealMadrid respondiam a cada golo do fabuloso n.º 10 dos rivais com gritos de «Rivaldo, hijo de puta!». E agora foi diferente: os dois golos finais de Ronaldinho, verdadeiras obras de arte de todos os tempos, receberam a homenagem de um estádio inteiro em silêncio e alguns mesmo a aplaudirem-no.

4- O futebol tem coisas verdadeiramente incompreensíveis. Entre nós talvez o maior motivo de espanto, ou pelo menos de admiração, é a notável carreira dos jogadores comandados por Norton de Matos e abandonados pela sua direcção: seis vitórias em onze jogos, quarto lugar ex æquo com o Sporting e com dois pontos a mais que o Benfica. Já no final do jogo do Dragão tinha-se visto o presidente que não paga salários a atender o telemóvel, em tom triunfante, como se o empate então obtido devesse, um átomo que fosse, à sua pessoa ou à sua linda gestão. Agora, após o triunfo por 3-0 na Figueira, o notável Chumbita Nunes afirmou que ele era «um prémio para o esforço que temos desenvolvido ». Que «temos»? É preciso ter lata!