quarta-feira, junho 04, 2014

MIGUEL SOUSA TAVARES - MUITO DINHEIRO, POUCO FUTEBOL

1- A quinze dias da abertura do Mundial, como seria de esperar, nada do que interessava ao Brasil, em termos de infraestruturas, está pronto. Estarão prontos, e alguns apenas à 25ª hora, os estádios considerados necessários para a competição - que não para o pais. Estádios como os de Manaus e Brasília, onde Portugal jogará, que já têm traçado o seu destino de elefantes brancos - além do mais, com custos inevitavelmente ultrapassados em multo. Em contrapartida, aquilo que interessava aos brasileiros comuns - aeroportos, estradas, hospitais, melhorias nas cidades - foi, ou esquecido, ou remendo para calendas brasileiras. A grande empreitada exigida ao Brasil para montar a faustosa festa a que a FIFA chama Mundial de Futebol, está pronta naquilo que imediatamente interessa à FIFA (com a grande incógnita de se saber se a componente fundamental das comunicações funcionará, num país que, até aqui, estava na idade da pedra das comunicações). Mas se, à 25ª hora. a FIFA se poderá dar, se não por satisfeita, ao menos por aliviada, o mesmo não poderão dizer os brasileiros, ao constatarem que quase tudo o que a empreitada tinha a ver com a melhoria das suas condições não estará feito e provavelmente jamais será feito. Ou seja: as sempre invocadas contrapartidas úteis para os países organizadores das grandes competições do futebol actual revelaram-se um embuste - mais um. Se eu fosse brasileiro e vivesse hoje no Brasil, seria, declarada e ferozmente, contra o Mundial.

Acho insustentável que um pais com tantas carências básicas e tanta desigualdade social tenha feito do Mundial, não uma oportunidade de melhorar qualquer coisa, mas sim de se arruinar, gastando dinheiros públicos sem sentido e apenas em benefício de alguns grandes construtores e fornecedores.

2- Porém, se a responsabilidade política dos decisores brasileiros não pode ser escamoteada, também é tempo de se olhar para o resultado devastador da passagem pelos países dessa tenebrosa organização chamada FIFA - aliás, montada, na sua actual natureza de organização meia secreta de negócios obscuros, por um sinistro e condecoradíssimo brasileiro, de seu nome João Havelange. Quanto mais a FIFA foi alargando os Mundiais, até chegar ao inconcebível número actual de 32 participantes, mais a festa se tornou dispendiosa, a sua organização ruinosa e o futebol exibido um pior espectáculo. Mas, em contrapartida, mais a FIFA e as Federações dos países participantes acumulam lucros com os quais sustentam uma vida de verdadeiros nababos dos seus dirigentes. A FIFA e a UEFA. Por isso, não se cansam, de inventar novas provas, como o Mundialito de Clubes ou a Taça das Confederações, ou um novo Europeu em estudo na UEFA. Mas, por onde passam, eles arruínam os países, excepto se já forem ricos e tiverem as infraestruturas de origem ou se forem novos-ricos, como a Rússia ou o Catar, que têm dinheiro de sobra para pagar estas vaidades.

E, desde que paguem, a FIFA aceita ir a jogo. E, pois, sem surpresa alguma para quem está atento a estas coisas, que agora se começa a descobrir como é que um pais tão inverosímil para sediar um Mundial, como o Catar, viu a FIFA atribuir-lhe a responsabilidade de o organizar em 2022: através do suborno de dirigentes das Federações nacionais e da própria FIFA. Para esta camarilha internacional não tem qualquer relevância o facto de o Catar não existir no mundo do futebol, de uma competição aí jogada em Junho e Julho ter de ser feita sob temperaturas de deserto arábico ou de, até à data, já terem morrido duzentos trabalhadores nepaleses, trabalhando em regime de semi-escravatura para que, a tempo e horas, claro, assegurarem os monumentos que a FIFA exige.

3- Nada disto tem que ver com futebol. Tudo tem apenas a ver com os biliões que giram à roda do negócio do futebol e que chegam, a todos os níveis em causa, para alimentar fortunas colossais de uns quantos; dirigentes nacionais e transnacionais, jogadores-vedetas e seus agentes, dirigentes de clubes e intermediários que compram e vendem jogadores e clubes, partilham bocados dos passes dos jogadores através de sociedades off-shore, fugindo ao fisco e vivendo na sombra de todos os negócios. Uma verdadeira máfia sem fronteiras, que vive e se alimenta da aficción do públíco do futebol.

É por isso que, como saberão os meus leitores antigos, eu execro a diarreia nacionalista que se monta nestas ocasiões à volta da Selecção, como se eles fossem os novos (e únicos) heróis da Pátria. Não suporto as campanhas de publicidade sempre com apelos ao patriotismo, como se o patriotismo fosse receber uma fortuna para representar Portugal a dar chutos numa bola. Não suporto as coberturas de imprensa em directo de cada passo dado pelos heróis da Selecção - a saída do estágio, a partida e chegada do autocarro, a zona VIP do aeroporto, o hotel da Selecção, os menus especiais feitos para os heróis, as conferências de imprensa, modelos de banalidade e vacuidade, repetidas e retransmitidas ad nauseum. E o Presidente da República que recebe os heróis e os pré-condecora à partida do solo pátrio, quais Vascos da Gama prestes a arriscarem a vida na travessia do Cabo das Tormentas em demanda da índia. Para mim, patriotismo é outra coisa, muito mais simples e que também não exclui, sendo o caso, os jogadores da Selecção: pagar os impostos devidos, votar nas eleições e dar mais ao seu pais do que aquilo que se recebe dele.

Toda esta diarreia noticiosa, toda esta confusão deliberadamente estabelecida entre futebol e pátria, visa uma única coisa, que a imprensa, consciente ou inconscientemente, alimenta: manter o público mobilizado, manter as multidões cativas. Pois que, sem público e sem multidões, não há dinheiro que sustente o negócio. Não há publicidade, não há transmissões televisivas, não há forma de vender jornais, não há possibilidade de pagar fortunas e cobrar comissões de 10% na venda de um jogador. É preciso que o público continue a acreditar que este é o maior espectáculo do mundo, que afasta e sufoca tudo o resto, pois que ninguém pode adormecer uma noite sem saber que o Raul Meireles fez uma nova tatuagem e sem saber que o Crístiano Ronaldo já faz trabalho de ginásio.

E, todavia, eu adoro futebol. Gosto tanto, que sou capaz deparar e ficar a ver um futebol de praia ou um futebol de rua entre miúdos. Acho o futebol o mais democrático e o mais igualitários de todos os desportos, pois que, no limite, basta apenas uma bola, nem que seja de trapos, e uma baliza delimitada por duas pedras para poder ser jogado. E fascina-me a universalidade do futebol, a sua linguagem simples e intuitiva em cada canto do mundo. Mas a indústria do futebol moderno é o oposto disso: é a sua apropriação por uma seita de abutres, de gente que é capaz de comprar um clube como o Manchester United sem nunca antes ou depois ter ido ao estádio ver um jogo, apenas porque concluiu que a alienação de massas que o futebol consegue gerar como poucas outras actividades é uma oportunidade de negócio imperdível.

E o problema é que quanto mais o futebol custa milhões e gera milhões, mais jogos e mais competições exige, ao ponto em que a repetição, a rotina e o cansaço de atletas e espectadores, irem aos poucos minando o fascínio do jogo. São assim os absurdos Mundiais dos tempos modernos. Se quiserem encontrar um jogo-tipo desse futebol cansado e exaurido de que falo, desse futebol que fatalmente iremos ver no Mundial do Brasil, peguem no Portugal-Grécia de sábado passado. Podem dar-me todas as justificações e desculpas para aquele futebol de eunucos, mas, tanto quanto sei, o espectáculo era pago e houve 35.000 espectadores que pagaram bilhete para assistir àquela tristeza. Pela parte que me toca, agradeço a Paulo Bento, a Fernando Santos e aos seus seleccionados, uma reparadora sesta, que começou aos 20 minutos de jogo e só acabou depois do apito final, com a certeza de que, ao abrir os olhos para ver o resultado final, ele só podia ser o do início: 0-0.

in abola


Um breve comentário à crónica :

É verdade..."Uma verdadeira máfia sem fronteiras, que vive e se alimenta da aficción do público do futebol"....há tanta coisa que nada tem a ver com futebol, alimentando outros interesses...por exemplo, um MST ser pago pela Abola para falar de futebol...:-)

E o mesmo MST que: " E, todavia, eu adoro futebol. Gosto tanto, que sou capaz deparar e ficar a ver um futebol de praia ou um futebol de rua entre miúdos. " ...é o mesmo que adormece na maioria dos jogos, pelos relatos que nos conta nas suas crónicas semanalmente...mas pronto, nada que uma caçada durante um dia inteiro para acertar num único gambozino ou ver aqueles jogos que param a cada 30 segundos dos gajos das meiinhas brancas e cabelos penteadinhos...:-)

É tal como a FIFA e UEFA há muita gente a alimentar-se do futebol...e "Nada disto tem que ver com futebol.":-)