quarta-feira, janeiro 05, 2005

Miguel Sousa Tavares



Os brasileiros

Não deixa de ser curioso que os três melhores jogadores estrangeiros que jamais passaram pelos três grandes fossem todos africanos e que nunca tenham tido seguidores da sua nacionalidade e ao seu nível nesses clubes: o Benfica nunca mais encontrou um moçambicano como Eusébio, o Sporting nunca mais encontrou um maliano como esse fabuloso Salif Keita e o FC Porto nunca mais encontrou no Magrebe uma sombra que fosse do fantástico Rabat Madjer.

ATRIBUI-SE a José Maria Pedroto a célebre frase de que se um brasileiro numa equipa de futebol é bom e dois é aceitável, três já é uma escola de samba.

O que a frase pretende simbolizar é que os futebolistas brasileiros têm tanto de bons, tecnicamente, como de maus, disciplinarmente. Juntem-se três ou mais brasileiros numa equipa europeia e imediatamente abranda o ritmo de jogo em campo, facilita-se o ambiente disciplinar no balneário e forma-se um «grupo parlamentar» à parte, que vai pôr em causa o bom funcionamento da maioria de governo e encher de cabelos brancos treinadores e dirigentes. É claro que há excepções e algumas bem notáveis. Há casos de jogadores brasileiros, ao longo de gerações, que se adaptaram a Portugal de tal maneira que ficaram como referência eterna dos clubes por onde passaram, quer em termos de classe futebolística quer em termos de profissionalismo e dedicação ao clube.

Nas gerações mais recentes o caso mais impressionante é o de Aloísio, que, depois de ter comandado com uma classe incomparável a defesa do FC Porto durante mais de 10 anos, jogando até aos 37, por cá ficou, ligado ao clube, já lá vão mais de três anos. Mas as excepções confirmam a regra e não será por acaso que não encontramos nenhum grande clube europeu que tenha ao seu serviço simultaneamente mais de dois, excepcionalmente três, jogadores brasileiros.

Os clubes espanhóis, também por afinidades culturais, preferem reforçar-se no mercado espanhol-americano, o que também acontece em parte com italianos relativamente à Argentina. Os alemães preferem pesquisar nos mercados de Leste, e os ingleses, franceses, belgas e nórdicos no mercado africano. E há também quem recorra a mercados emergentes, como o norte-americano, o coreano ou australiano.

Não é o caso português: entre nós, os brasileiros levam a quota de leão no mercado das importações, fazendo de Portugal, de longe, o maior importador de futebolistas brasileiros. Benfica, Sporting e FC Porto têm, todos eles, duas escolas de samba ao serviço da equipa principal, para além de alguns outros que andam pelas equipas B ou emprestados a outros emblemas.

E não são só os três grandes: da Liga de Honra às Distritais há centenas de jogadores brasileiros ao serviço dos clubes portugueses. Em muitos casos, a maior tarefa de dirigentes de clubes completamente obscuros é a viagem anual que fazem ao Brasil para ir buscar «reforços» para o treinador. O excesso de concentração no mercado brasileiro tem, aliás, prejudicado em muito um trabalho mais sério, mais difícil e porventura mais profícuo, que seria o da prospecção de outros mercados, como o sul-americano e, em especial, o africano.

Não deixa de ser curioso que os três melhores jogadores estrangeiros que jamais passaram pelos três grandes fossem todos africanos e que nunca tenham tido seguidores da sua nacionalidade e ao seu nível nesses clubes: o Benfica nunca mais encontrou um moçambicano como Eusébio, o Sporting nunca mais encontrou um maliano como esse fabuloso Salif Keita e o FC Porto nunca mais encontrou no Magrebe uma sombra que fosse do fantástico Rabat Madjer.

Não encontraram, isto é, nem sequer procuraram. Descansar no mercado brasileiro é mais cómodo, mais fácil e ao alcance de todos. Alguns factores objectivos contribuem, decerto, para isso, mas outros relevam apenas da preguiça ou dos interesses instalados. Temos, em primeiro lugar, a língua, que, sem dúvida é um factor que ajuda à integração mais rápida dos brasileiros. Mas não apenas a eles: como a generalidade dos nossos dirigentes, treinadores e «empresários» não falam outra língua que não o português, o Brasil é o único local que lhes permite falar de negócios sem medo de não perceberem o que se diz e combina. E é muito mais agradável viajar em negócios para o Brasil do que viajar para o Mali, a Argélia, o Peru ou a Bulgária. Temos, depois, a abundância de bons jogadores no mercado brasileiro, o que faz com que os seus preços sejam ainda relativamente baratos, embora já não o eldorado de tempos antigos. É possível, no Brasil, comprar, por um terço do que custaria um jogador português, um brasileiro que cá se revela a estrela da companhia.

Mas também sucede o contrário: pagar uma fortuna por alguém que lá é uma estrela e cá joga a ritmo de samba, pouco disposto para a maior combatividade do futebol europeu. O caso paradigmático é Roger, que acaba de regressar para a sua terceira tentativa no Benfica, onde apenas tem sido uma caríssima decepção. E Diego, do FC Porto, tanto lhe pode seguir as pisadas como, pelo contrário, meditar no exemplo do Deco, que, também ele, esteve à beira de se perder mas que acabou por ser o que é (entre outras coisas, o jogador que mais correu durante um jogo da Liga dos Campeões do ano passado—em Manchester, segundo um estudo da UEFA).

Neste talvez excessivamente prolongado defeso natalício, estas considerações vêm a propósito dos problemas que Sporting e F.C. Porto têm vivido com os seus brasileiros. Vale a pena meditar no que lhes tem acontecido e pensar friamente se as vantagens dos jogadores brasileiros valem os inconvenientes. Neste defeso, o Sporting viuse obrigado a fazer um «cut-loss», como dizem os economistas, e a livrar-se do Tinga — uma grande aposta que não se cumpriu. Ao mesmo tempo, e depois de ter visto o Liedson dar toda a ideia de ter forçado o quinto amarelo em Guimarães, para se pôr de fora do jogo contra o Benfica e prolongar as férias no Brasil, vive agora o suspense de todos os dias esperar que ele se digne aparecer pela Academia de Alcochete.

Mas, porque, de facto, o «Liedson resolve», o Sporting, não só não se envergonhou de recorrer a um expediente tão-pouco desportivista como o da antecipação do jogo com o Pampilhosa para queimar a suspensão do Liedson, como, inevitavelmente, terá de engolir segunda vez o orgulho e colocá-lo em campo contra o Benfica, nem que ele desembarque na manhã do jogo. E, dê-se o caso de ele marcar mais um golo decisivo, e tudo estará perdoado—como era perdoado ao Jardel, que, do alto do seu extraordinário estatuto de jogador que valia 40 golos por época, era praticamente inimputável a nível disciplinar.

No FC Porto as férias natalícias dos brasileiros foram ainda mais escandalosas. Excepção feita ao Luís Fabiano, que depois de passar dois meses a descansar de uma lesão contraída ao serviço da selecção brasileira e dois jogos a descansar em offside ao serviço do clube, e ao Leandro, que já tinha passado mais de um mês de férias no Brasil, depois de contratado directamente para a mesa de operações, e que agora vai passar mais uns tempos a «ganhar ritmo competitivo», ninguém mais apareceu ao trabalho quando o deveria ter feito. E se o Carlos Alberto teve mais férias porque ninguém sabe o que fazer ao seu imenso talento, se os novatos Diego e Pepe já era de esperar que não voltassem antes do réveillon, se o Maciel apenas confirmou a sua falta de profissionalismo, já o atraso do Derlei só pode ser tido como sinal dos tempos e exemplo prático dos malefícios da tal segunda escola de samba, esta época instalada no Dragão.

Anuncia-se que o FC Porto vai pôr todos de castigo no próximo jogo contra o Rio Ave, o que é uma forma de manter a face e dar o exemplo ao balneário, mas que não deixa de ser, também e prioritariamente, um castigo ao próprio clube que, sem o esquadrão brasileiro, arrisca terceira derrota caseira para o campeonato. O dilema não é fácil de resolver: o clube tem de fazer alguma coisa, sob pena de aquilo descambar na anarquia. Também não se pode prejudicar a si próprio e não pode igualmente alienar desde logo a motivação de jogadores que são miúdos de 19 e 20 anos e que, por mais bem pagos que sejam, não podem ter ainda maturidade para perceber todas as implicações de um estatuto de profissional de alta competição e resistirem, como se não fossem humanos, a todas as tentações que os seus verdes anos, o dinheiro e o prestígio de que dispõem e as oportunidades que lhes surgem tornam quase impossível contornar. Para mais, estão longe da pátria e da família, era Natal e ano novo, lá é Verão, faz calor e samba, e cá é frio, triste e longe. Por mais que se fuja à questão, só a língua os une a nós e só o dinheiro os prende aos clubes. A questão é de fundo e estes episódios natalícios devem levar a reflectir se é boa política para os clubes portugueses continuarem a investir, cega e exclusivamente, no mercado brasileiro.