sábado, abril 30, 2005

Miguel Sousa Tavares

Detalhes

A pergunta sem resposta séria é esta: alguém pode garantir que o Benfica teria ganho este jogo, a jogar no campo de dimensões reduzidas da Amoreira, com oito mil adeptos a apoiá-lo contra dois mil estorilistas?



1- Vendo o presidente do Estoril sentado ao lado do presidente do Benfica, no Estádio do Algarve, pensei que ele tinha razões para se sentir intensamente feliz — ou intensamente envergonhado, conforme a perspectiva...O seu Benfica vencera o jogo e o seu Estoril enchera a tesouraria. Raramente alguém consegue reunir razões de coração e razões de carteira para estar feliz no mesmo momento. Ah, mas há sempre um senão: sobre tanta felicidade de António Figueiredo ficará sempre a pairar a memória do dia em que o presidente do Estoril vendeu as últimas hipóteses de permanência do clube na SuperLiga, a troco de um milhão de euros e de facilitar ao Benfica a conquista do campeonato, subvertendo, em perfeita comunhão de sentimentos com o presidente do Benfica e o secretário-geral da Liga, os tão proclamados princípios de transparência e lealdade competitiva. Dentro e fora do Estádio do Algarve, antes e durante o jogo, foi verdadeiramente uma total confluência de vontades benfiquistas que se uniram para evitar que, primeiro, dez e, depois, nove rapazes do Estoril pudessem continuar a sonhar. Li por aí que há quem se admire com os que se admiram que esta perfeita golpada tenha sido tolerada pela Liga de clubes. Trazem à colação o recente exemplo do Sporting, comprando a antecipação do jogo da Taça com o Pampilhosa, para limpar o amarelo que impedia Liedson de jogar contra o Benfica. Têm razão mas isso é um assunto entre os dois autoproclamados cavalheiros do futebol português, cujo fair play e limpeza de processos eles se explicarão mutuamente. Restam os outros e, para os outros, não vale o argumento de que já muitos jogos trocaram de local a pedido dos anfitriões. Primeiro, porque isso sucedia no tempo em que havia estádios sem iluminação para receber jogos televisionados, o que hoje já não sucede. Segundo — e este é o detalhe essencial—, quando tal sucedia, sucedia com todos os grandes e não, como agora, num caso ad hoc a favor de um só deles. Também não vale o argumento de que os clubes pequenos têm direito de fazer grandes receitas, aproveitando a popularidade do grande Benfica—que ninguém contesta mas que é um argumento de facto e não de razão. Se o fosse, à excepção do Dragão e de Alvalade, o Benfica poderia permitir-se o luxo de jogar sempr é em casa e ainda passar por benemérito dos pequeninos: teríamos, não um campeonato de futebol, mas um concurso de popularidade entre os clubes. Mesmo assim, sendo certo que também FC Porto e Sporting arrastam mais adeptos que os locais, tem de se colocar a questão da reciprocidade e aí pergunto: alguém imagina o sr. António Figueiredo a fazer disputar o Estoril-FC Porto, não naquele campo terrível da Amoreira, onde o FC Porto sempre sofre, mas, por exemplo, em Aveiro ou na Maia? E o Estoril-Sporting em Leiria ou Setúbal? Ese, a seguir ao exemplo do Estoril, vier o Penafiel, e depois disso qualquer um, pergunto que paródia de campeonato seria este em que os clubes pequenos viveriam em perpétuo leilão dos seus jogos caseiros contra os grandes? Porque, finalmente, a pergunta sem resposta séria é esta: alguém pode garantir que o Benfica teria ganho este jogo, a jogar no campo de dimensões reduzidas da Amoreira, com oito mil adeptos a apoiá-lo contra dois mil estorilistas, em vez do campo largo (para jogar com dez e nove ainda mais largo...) do Algarve, com 30 mil adeptos a apoiá-lo e a pressionar o árbitro, face a seis adeptos do Estoril, que conseguiram comprar bilhete fora das casas do Benfica, e entre os quais não incluo, obviamente, o presidente do próprio Estoril?

2- Sábado à noite, em Alvalade, com 0-0 no marcador, um jogador da Académica isola-se a caminho da área do Sporting quando Polga corta a bola ostensivamente com a mão. É lance para vermelho, em qualquer compêndio de arbitragem. Mas não em Alvalade: o árbitro vem de lá detrás, muito devagar, com tempo mais que suficiente para pensar no que fazer, mete a mão ao bolso e saca... amarelo. Há dois tipos de erros dos árbitros: os erros involuntários, sobre questões de facto, e os erros voluntários, sobre questões de leis do jogo—como é óbvio, só no primeiro caso é que se pode falar em erro. Quem pode garantir que este erro não valeu um ponto ao Sporting? Domingo à tarde, no Algarve: o Benfica perde por 0-1, há um canto a favor do Estoril e, nas barbas do árbitro, Ricardo Rocha aplica um gasganete num jogador do Estoril, impedindo-o de saltar à bola e só o largando quando o viu por terra. Passado uma e duas vezes na televisão, o lance só conseguiu deixar dúvidas ao comentador de serviço, que viu os dois jogadores «a agarrarem-se mutuamente». Era penalty e, muito possivelmente, o 0- 2. Quem pode garantir que não valeu três pontos ao Benfica? Domingo à noite em Aveiro: Ibson vai entrar na área do Beira-Mar quando é literalmente agredido a pontapé por um jogador aveirense. O árbitro resolve, como disse o comentador, «dar a lei da vantagem» e, depois, já que tinha dado alguma coisa, absteve-se de dar também quer o vermelho quer o amarelo. Pouco depois Diego isola-se, evita o guarda-redes e vai marcar golo quando este levanta uma perna e rasteira-o: amarelo para Diego, por «simulação». Quem pode garantir que, se os lances têm sido ao contrário, o jogo acabaria sem um penalty contra o FC Porto e dois portistas expulsos? José Couceiro tem alguma razão quando diz que actualmente os árbitros, quando em dúvida, decidem sempre contra o FCPorto. Tem alguma razão mas não tem toda: é que não é só quando têm dúvidas, agora é também quando têm a certeza.

3- A acreditar na manchete de ontem deste jornal, foi a vontade de Deus que levou o Benfica à vitória no Algarve. Não foi o rigor disciplinar desigual do árbitro, nem o penalty esquecido, nem os 27 livres de que falava Litos à entrada da área do Estoril, até que um deles finalmente resultasse, nem os 30 mil adeptos de um lado e os 6 do outro, neste jogo em casa do Estoril. Foi a vontade de Deus. Fico mais tranquilo assim: com tantas queixas aos governos por parte da direcção do Benfica, tantos pedidos de entrevista aos membros do governo, embaixadas benfiquistas ao serviço da propaganda partidária do partido vencedor, manifestos, ameaças e a garantia solene, logo em Agosto, de que este ano ninguém tira o campeonato ao Benfica, eu já começava a temer que o campeonato se decidisse por decreto-lei. Mas, sendo antes por vontade de Deus, o melhor é não contestar.

4- Há dois jogadores do Sporting que verdadeiramente merecem ser campeões. Um é Sá Pinto, não apenas por aquilo que sofreu e que teria levado muitos a desistir, não apenas pela alma e paixão com que joga, mas pela qualidade e inteligência do seu jogo. Tacticamente faz lembrar Cruyff: não é extremo, não é médio, não é primeiro ponta-de-lança nem segundo— é um pouco de tudo isso e até defesa, se necessário. Aos 32 anos de idade, o mais notável em Sá Pinto é que ele continua a jogar futebol com a mesma paixão, a mesma raiva, o mesmo prazer, com que todos nós—os que gostamos de futebol— jogávamos em miúdos. O outro é Liedson, que já no ano passado aqui classifiquei como o melhor jogador do campeonato português, em minha o pinião. O golo que marcou ao Moreirense, na penúltima jornada, foi um momento mágico de futebol, um verdadeiro hino ao ponta-de-lança moderno. Vale a pena recordar: bola batida longa e por alto pelo Ricardo; Liedson corre, juntamente com dois defesas do Moreirense; com a diagonal que faz deixa logo um deles fora da jogada e depois, com um toque de cabeça, afasta o outro e entra na área pelo lado direito, com a bola a saltitar à sua frente; em lugar de tentar o remate, que já seria em desequilíbrio, ao ângulo oposto, ele remata na passada, de cima para baixo, ao canto mais próximo e sem defesa. Sem menosprezo pelos outros bons jogadores que o Sporting tem, julgo que a estes dois ficará a dever o campeonato, caso o consiga.