A mania das grandezas
Luís Filipe Vieira não tardará a perceber que, afinal, é preciso muito trabalho, muita organização, muito planeamento e muito talento para conseguir chegar onde o FC Porto chegou
1- Uma das coisas que, desde o início, mais me impressionaram na época futebolística que agora chegou ao fim foi a determinação surda, obstinada, de serem campeões, transmitida pelos responsáveis do Benfica. Não, não foi apenas a vontade, que todos têm, de o ser; não foi apenas a ambição, mais do que legítima, de pôr fim a uma década de jejum; ou o discurso mobilizador para produzir efeitos internos. Foi muito mais do que isso, qualquer coisa de palpávelmas dificilmente explicável, que se traduziu numa espécie de desespero, de pura e simples rejeição de qualquer outra hipótese que não fosse essa, em termos de levar o presidente doBenfica, Luís Filipe Vieira, a afirmar, a abrir a época, que este ano, doesse a quem doesse, seriam campeões. A forma como o disse e as sequências práticas dessa afirmação ao longo do campeonato, deixaram-me a clara impressão de que, mais do que a conquista de um título, tratava-se da sobrevivência do próprio clube.
Esta semana, ao lançar o seu ultimatum aos sócios do clube, L. F. Vieira, confirmou a minha impressão e mostrou que não foi preciso esperar muito para que ele comecasse a tirar rendimentos internos do título. O Benfica, diz ele, «tem condições para ser o maior clube do Mundo ao nível de sócios», pelo que não se contenta com menos de 300.000 sócios daqui até Outubro e 100 milhões de euros a médio prazo, vindos dos novos sócios. Ou então vai-se embora. Está tudo, pois, nas mãos dos adeptos: ou aderem ao novo cartão e fazem do Benfica um clube «imparável na Europa», ou então mudam de presidente.
O que dizer desta jogada de tudo ou nada?
Primeiro, que as contas não parecem encaixar bem: 300.000 novos sócios a 55 euros não dá 100 milhões de euros, mas apenas 15,5 milhões. Para chegar aos 100 milhões seriam necessários mais de... um milhão e oitocentos mil sócios! Segundo, que parece bem pouco aliciante a proposta do Benfica aos sócios:
55 euros em troca de ficarem pagas as quatro primeiras quotas, ter uns descontozinhos na Telepizza, na Papelaria Fernandes, na compra da Nova gente e da Maria, no kartódromo de Campera a seguir às vitórias do Benfica e do direito a ver dois jogos da SuperLiga em toda a época. Ao menos a Operação Coração e a Operação Fica Amaral! eram mais óbvias.
Esquecendo o
delírio do «maior clube do Mundo» (saberá Vieira que
o Manchester United tem cinco milhões de adeptos na Ásia e o Real Madrid três milhões?), mesmo o projecto da ressurreição do Benfica europeu não me parece que vá lá por este caminho, tipo magia instantânea. Compreendo o desespero de quem dirige o maior clube português em número de adeptos, e mais não faz, ano após ano,
do que negociar em situação de desespero com os credores e tentar evitar a bancarrota sempre ao virar da esquina, sabendo que, mesmo para manter uma equipa tão fraquinha quanto a deste ano, os resultados de exploração são sistematicamente negativos. São-no em todos os clubes portugueses, de resto, só que o Sporting e, sobretudo,
o FC Porto têm mostrado capacidade de realizar receitas extraordinárias com vendas de jogadores, enquanto, olhando para
o plantel do Benfica, o mais que se arranja é algumas almas caridosas a jurar que o Luisão é disputado pelos grandes da Europa.
Não me parece, de facto, que seja pelo caminho da angariação utópica de centenas de milhar de sócios que o Benfica, ou quem quer que seja, possa dar a volta à situação. Ao lançarem-se na construção dos novos estádios, os clubes sabiam que teria de ser pela via da venda de lugares cativos a sócios e empresas (que tão mal correu no Benfica...) que se geraria o grosso das receitas de manutenção. Não pela via da angariação de novos sócios, para os quais, aliás, deixou de haver lugar garantido nos estádios. E, se não há lugar garantido, para que serve ser sócio?
Já várias vezes me debruçei aqui sobre este tema, defendendo o que julgo poderia ser o caminho do futuro: transformar os clubes de futebol emqualquer coisa mais do que simples produtores de espectáculos futebolísticos. Transformá-los, por exemplo, em clubes prestadores de serviços aos sócios. O Automóvel Clube de Portugal é o maior clube português porque nasceu para fazer isso. Começou por desempanar carros e ensinar a conduzir e hoje em dia presta um sem-número de outros serviços que atraem os sócios (e isto não é publicidade, eu nem sequer sou sócio...). Não há razão para que um clube de futebol não tenha para propor aos seus sócios serviços na área do desporto e manutenção física, saúde, seguros, viagens, hotelaria, restauração, acompanhamento jurídico e fiscal, rent-a-car, baby sitting e campos de férias de miúdos, eu sei lá — é escolher, quer directamente, quer em outsourcing. Esse é um caminho, no qual o F C Porto, por exemplo, já deu os primeiros passos e o Benfica está a zero ou quase. Outro é o do merchandising, onde o Benfica está também, atrás do Porto, o que é incompreensível. Outro, obviamente, é o da formação, onde o Benfica está a anos-luz de um Sporting e mesmo de vários outros clubes de dimensão francamente menor.
Depois, há outro aspecto a considerar, que é o da dimensão internacional do clube. É um aspecto decisivo para proporcionar os bons negócios, seja na venda de jogadores ou na contratação de jogos de prestígio e bom retorno financeiro no estrangeiro. Para isso é preciso que o clube esteja na ribalta internacional, que seja visto, falado e objecto de notícia.
Ora, neste aspecto, o Benfica actual, pese toda a prosápia de muitos benfiquistas, dava tudo para poder estar no patamar do F C Porto. Não há como viajar pelo Mundo para o perceber. E isso não é tarefa que se consume com êxito a curto ou a médio prazo.
Mesmo os 300.000 novos sócios não fariam do Benfica «um clube imparável na Europa» enquanto o diabo esfrega um olho. Luís Filipe Vieira quer, e só pode querer, ver o Benfica de regresso ao topo da cena europeia.Mas não é assim tão rápido, tão linear e tão fácil. Não só a Lei Bosman tornou bem mais difícil os pequenos e médios enfrentarem os grandes, como também era infinitamente mais fácil vencer a Taça dos Campeões da década de 60 ou 70 do que vencer a Liga dos Campeões actual.
Mesmo o F C Porto não chegou lá, ao contrário do que muita gente pretende fazer crer, apenas porque Mourinho chegou ao Porto um ano e meio antes. Sem tirar qualquer mérito aMourinho, é necessário não esquecer que, para trás, estava uma década de campeonatos nacionais e presenças constantes na Liga dos Campeões, que fizeram do F C Porto a segunda equipa mais assídua da prova. Quando conquistou o seu título da Champions, o F C Porto já era a equipa portuguesa com mais títulos internacionais, já contava quatro ou cinco ultrapassagens da fase de grupos da prova, já integrava há anos o G-14, já habituara a Europa a bater-se em pé de igualdade ou quase contra os tubarões do continente. Mesmo este ano, onde a equipa só somou equívocos e frustrações, ultrapassou a fase de grupos da Champions e só foi definitivamente afastada pelo Inter a dez minutos do fim do jogo da segunda mão dos oitavos-de-final.
Não se chega aqui de repente ou por simples vontade. A inveja e a maledicência nacionais inventaram a lenda de que os triunfos do F C Porto da era moderna eram todos conseguidos em jogadas subterrâneas.
Mas agora, que se acham capazes de o imitar, é que eu quero ver o que valem, lá, onde o valor das grandes equipas e dos grandes clubes se mede a sério: na Europa. Luís Filipe Vieira não tardará a perceber que, afinal, é preciso muito trabalho, muita organização, muito planeamento e muito talento.
2- Ao menos, o presidente do Sporting não tem preocupações destas. Ele é o presidente do melhor clube português, os aristocratas da bola, os gestores de topo, os senhores do futebol português. Se não ganham nem convencem é porque o sistema e as arbitragens os perseguem, ano após ano. Não é porque o Ricardo seja notoriamente incompetente em todas as bolas aéreas sobre a pequena área, como se viu contra o Benfica, em Alkmaar, na final da UEFA ou na final do Euro. É porque é sempre carregado e os árbitros nunca vêem.
Já ninguém presta vassalagem ao velho senhor. Mas quando será que regressa a monarquia?