Acho que foi na última página da "Seara Nova", numa secção intitulada "Factos e Documentos", por onde habitualmente desfilavam, sob a forma de notícias "sem comentários", as misérias e ridículos do regime, que li a redacção de uma menina de uma escola da região de Leiria intitulada "A Pátria". Estavam ainda para lavar e durar os tempos obscuros do "Deus, Pátria e Família" e do "Portugal do Minho a Timor", e a propaganda "patriótica" tinha-se, em tempos de guerra colonial, exacerbado até à esquizofrenia. A redacção rezava mais ou menos assim (cito, obviamente, de cor): "A Pátria é muito bonita. A Pátria tem muitas casas, muitas árvores, muitas coisas maravilhosas. Eu nunca fui lá, à Pátria".
Também eu "nunca fui lá, à Pátria", e quando, a propósito da selecção e do "Mundial", vejo tanta gente a agitar freneticamente bandeiras e a cantar o hino, pergunto-me muitas vezes: "De que é que esta gente está a falar? O que tem o futebol a ver com isso da Pátria?". É nestas alturas que os "patriotas" do futebol clamam à uma que devemos todos apoiar a selecção "nacional", e apoiá-la acriticamente porque a Pátria, como o outro dizia, "não se discute".
Os sociólogos poderão talvez explicar, ou tentar explicar, o que leva tantas pessoas, jovens e não só, a pôr, a pretexto do futebol, bandeiras nacionais à janela, a pintar a cara com a esfera armilar e as quinas, a agitar cachecóis verdes, vermelhos e amarelos, mas essas explicações passarão decerto ao lado do futebol. Na verdade, a maioria nem é provavelmente constituída por verdadeiros adeptos de futebol, pois a Pátria dos adeptos é, fundamentalmente, o seu clube, e os adeptos de futebol menosprezam-nos como intrusos, como "condutores de domingo", aos assim chamados "adeptos de selecção", que só aparecem, unânimes, no futebol por alturas de "Mundiais" ou de "Europeus".
O futebol tem esse poder, o de alimentar sentimentos comunitários de pertença e identidade e de delimitar fronteiras simbólicas entre "nós" e "os outros". Em tempos de crise de valores identitários, de desagregação e diluição cultural - as próprias línguas nacionais foram sendo relegadas para um estatuto subalterno face ao inglês comunicacional global; e não deixa de ser significativo o modo como os "adeptos da selecção" portugueses partilham espontaneamente simpatias com a selecção do Brasil, ou com a de Angola, países da mesma língua "materna" -, o futebol emerge como último território de afirmação de diferença e de reconhecimento. Se se tratasse, como tantas vezes se diz, apenas de necessidade de auto-estima de um país descrente de si mesmo, dificilmente se explicaria que o futebol mobilize, do mesmo excessivo modo, alemães, dinamarqueses, ingleses, japoneses, suecos, em torno das suas selecções "nacionais".
Símbolo da Pátria, a bandeira do futebol funciona hoje, quando escasseiam as grandes causas colectivas, como representação sobretudo da Mátria. Embrulhamo-nos nela como órfãos que somos, e gritamos "Portugal! Portugal! Portugal!" como quem chama por uma infância antiquíssima que confusamente pressentimos que perdemos. E, se não ganharmos "nós", que ganhe o "país irmão" (do mesmo berço matricial), o Brasil.
O António José Seguro, ó Pedro Nuno?
Há 18 horas