Luciano Amaral, Professor universitário no DN
Vem aí o Campeonato do Mundo de futebol, coisa que de quatro em quatro anos dá origem a uma série de subprodutos mais ou menos excitantes: as colecções de cromos, os "especiais" televisivos (digamos, sobre os jogadores, um a um, da selecção do Togo), os "coleccionáveis" de jornal (por exemplo, recuperando a "epopeia dos Magriços", o "desastre de Saltillo" ou o "génio de Puskas"). Tudo coisas razoavelmente inofensivas. Mas há um subproduto particularmente pernicioso, latente entre nós durante o ano, e que se desenvolve com toda a ferocidade por estas alturas: o moralista antifutebol. O moralista antifutebol lamenta, entre o paternalista e o indignado, a devoção do povo ao culto pagão, como se o povo devesse, em vez disso, dedicar-se à leitura compulsiva do teatro camoniano ou à reflexão sobre filosofia analítica anglo-saxónica. O moralista antifutebol é, evidentemente, uma pessoa muito séria, cuja vocação consiste em dar reguadas aos meninos que ainda não soletram bem e para quem o futebol é a continuação do recreio dentro desta enorme sala de aula que é o mundo.
Para o moralista antifutebol não se pode gozar descomplexadamente uma boa partida de futebol nem gastar a hora do almoço a apurar com o colega do escritório sobre se foi ou não penalty. Mas não é este o único subproduto pernicioso da época. O outro é o intelectual do futebol. Que é aquele para quem um jogo de futebol é uma obra de arte, para quem Ronaldinho Gaúcho é um génio do calibre de William Shakespeare e um golo de Zidane uma peça capaz de emparelhar com A Virgem dos Rochedos, de Leonardo da Vinci. O intelectual do futebol não consegue ver e comentar um jogo sem citar passagens alusivas de escritores ou outros intelectuais, ou sem estabelecer uma analogia com a tragédia grega, que é coisa que fica sempre bem. Como se, no dia seguinte no café, comentássemos o jogo com o empregado dizendo que o Brasil-França foi "digno de Sófocles" e não simplesmente "um jogão". No fundo, o intelectual do futebol é um espelho do moralista antifutebol, incapaz que é de acompanhar o jogo descomplexadamente sem uma caução intelectual.
Nunca estabeleci qualquer paralelo com a arte ou a filosofia, mas a verdade é que também eu sou um maluquinho do Mundial. A maluquice começou em 1974 (quatro anos depois do mítico escrete de 1970: Pelé, Rivellino, Jairzinho, Gérson, Tostão…), no campeonato que "devia" ter sido ganho pela Holanda de Cruiyff, Krol, Neeskens e Resenbrink (como se diz que "devia" ter ganho a Hungria de 1954 ou o Brasil de 1982), mas foi-o pela Alemanha de Beckenbauer, Muller e Maier. Como a maior parte das pessoas da minha geração que gostam de futebol, a minha equipa mítica é o Brasil de 1982 (Zico, Sócrates, Falcão, Cerezo, Júnior, Éder o "patada atômica", para além dos desastres Valdir Peres e Serginho, o qual ainda acabou a dar uns toques no "nosso" Marítimo) e o último campeonato verdadeiramente bom foi, talvez, o de 1986, quando "devia" ganhar e ganhou a Argentina de Maradona, Valdano e Bilardo. Como qualquer apreciador de futebol, espero todos os anos o aparecimento de equipas como a do Brasil de 1982 ou da Argentina de 1986 (tendo tido apenas uma amostra disso com a França de 1998) e de jogos dramáticos como o Holanda-Alemanha, de 1974, o Brasil-Itália, de 1982 ou o Argentina-Inglaterra, de 1986. Infelizmente, nada disso tem acontecido, sobretudo porque o Mundial perdeu a sua função de outrora, que era servir de montra de jogadores. Agora, eles aparecem esgotados, depois de uma época longuíssima, e a pouparem-se para o que é verdadeiramente importante, a época seguinte. Mas não é isso que me impede de continuar a esperar. Pelo que lá estarei outra vez este ano a ver os jogos quase todos, às mais inóspitas horas.
Não vale a pena repudiar o futebol em nome de valores mais importantes, nem compará-lo com o que não é comparável. O futebol é um entretenimento e um dos poucos redutos onde ainda podemos cultivar instintos básicos sem consequências: apoiar "os nossos", detestar "os outros", apoiar "os fraquinhos" (normalmente, equipas africanas), insultar "os fortes" (normalmente, a Alemanha ou a Inglaterra), dizer umas asneirolas de cerveja numa mão e a piza encomendada na outra. É um programa um bocadinho primitivo? Pois é, mas já agora deixem-me também socorrer-me da minha cauçãozinha intelectual. Serve-me Chesterton, que dizia que a visão intelectualóide do mundo "nos fez pensar que o nosso grande inimigo (…) seria a nossa 'natureza inferior', ou seja, os nossos prazeres e apetites, que na verdade são coisas inteiramente inocentes em si mesmas. (…) Lembra Tennyson, (…) que falava do melhoramento moral como o processo (…) de 'ultrapassar o primitivo' em nós. (…) Mas porque haveríamos de querer ultrapassar o primitivo em nós?" Vem aí a bola? Sejamos primitivos.
Vem aí o Campeonato do Mundo de futebol, coisa que de quatro em quatro anos dá origem a uma série de subprodutos mais ou menos excitantes: as colecções de cromos, os "especiais" televisivos (digamos, sobre os jogadores, um a um, da selecção do Togo), os "coleccionáveis" de jornal (por exemplo, recuperando a "epopeia dos Magriços", o "desastre de Saltillo" ou o "génio de Puskas"). Tudo coisas razoavelmente inofensivas. Mas há um subproduto particularmente pernicioso, latente entre nós durante o ano, e que se desenvolve com toda a ferocidade por estas alturas: o moralista antifutebol. O moralista antifutebol lamenta, entre o paternalista e o indignado, a devoção do povo ao culto pagão, como se o povo devesse, em vez disso, dedicar-se à leitura compulsiva do teatro camoniano ou à reflexão sobre filosofia analítica anglo-saxónica. O moralista antifutebol é, evidentemente, uma pessoa muito séria, cuja vocação consiste em dar reguadas aos meninos que ainda não soletram bem e para quem o futebol é a continuação do recreio dentro desta enorme sala de aula que é o mundo.
Para o moralista antifutebol não se pode gozar descomplexadamente uma boa partida de futebol nem gastar a hora do almoço a apurar com o colega do escritório sobre se foi ou não penalty. Mas não é este o único subproduto pernicioso da época. O outro é o intelectual do futebol. Que é aquele para quem um jogo de futebol é uma obra de arte, para quem Ronaldinho Gaúcho é um génio do calibre de William Shakespeare e um golo de Zidane uma peça capaz de emparelhar com A Virgem dos Rochedos, de Leonardo da Vinci. O intelectual do futebol não consegue ver e comentar um jogo sem citar passagens alusivas de escritores ou outros intelectuais, ou sem estabelecer uma analogia com a tragédia grega, que é coisa que fica sempre bem. Como se, no dia seguinte no café, comentássemos o jogo com o empregado dizendo que o Brasil-França foi "digno de Sófocles" e não simplesmente "um jogão". No fundo, o intelectual do futebol é um espelho do moralista antifutebol, incapaz que é de acompanhar o jogo descomplexadamente sem uma caução intelectual.
Nunca estabeleci qualquer paralelo com a arte ou a filosofia, mas a verdade é que também eu sou um maluquinho do Mundial. A maluquice começou em 1974 (quatro anos depois do mítico escrete de 1970: Pelé, Rivellino, Jairzinho, Gérson, Tostão…), no campeonato que "devia" ter sido ganho pela Holanda de Cruiyff, Krol, Neeskens e Resenbrink (como se diz que "devia" ter ganho a Hungria de 1954 ou o Brasil de 1982), mas foi-o pela Alemanha de Beckenbauer, Muller e Maier. Como a maior parte das pessoas da minha geração que gostam de futebol, a minha equipa mítica é o Brasil de 1982 (Zico, Sócrates, Falcão, Cerezo, Júnior, Éder o "patada atômica", para além dos desastres Valdir Peres e Serginho, o qual ainda acabou a dar uns toques no "nosso" Marítimo) e o último campeonato verdadeiramente bom foi, talvez, o de 1986, quando "devia" ganhar e ganhou a Argentina de Maradona, Valdano e Bilardo. Como qualquer apreciador de futebol, espero todos os anos o aparecimento de equipas como a do Brasil de 1982 ou da Argentina de 1986 (tendo tido apenas uma amostra disso com a França de 1998) e de jogos dramáticos como o Holanda-Alemanha, de 1974, o Brasil-Itália, de 1982 ou o Argentina-Inglaterra, de 1986. Infelizmente, nada disso tem acontecido, sobretudo porque o Mundial perdeu a sua função de outrora, que era servir de montra de jogadores. Agora, eles aparecem esgotados, depois de uma época longuíssima, e a pouparem-se para o que é verdadeiramente importante, a época seguinte. Mas não é isso que me impede de continuar a esperar. Pelo que lá estarei outra vez este ano a ver os jogos quase todos, às mais inóspitas horas.
Não vale a pena repudiar o futebol em nome de valores mais importantes, nem compará-lo com o que não é comparável. O futebol é um entretenimento e um dos poucos redutos onde ainda podemos cultivar instintos básicos sem consequências: apoiar "os nossos", detestar "os outros", apoiar "os fraquinhos" (normalmente, equipas africanas), insultar "os fortes" (normalmente, a Alemanha ou a Inglaterra), dizer umas asneirolas de cerveja numa mão e a piza encomendada na outra. É um programa um bocadinho primitivo? Pois é, mas já agora deixem-me também socorrer-me da minha cauçãozinha intelectual. Serve-me Chesterton, que dizia que a visão intelectualóide do mundo "nos fez pensar que o nosso grande inimigo (…) seria a nossa 'natureza inferior', ou seja, os nossos prazeres e apetites, que na verdade são coisas inteiramente inocentes em si mesmas. (…) Lembra Tennyson, (…) que falava do melhoramento moral como o processo (…) de 'ultrapassar o primitivo' em nós. (…) Mas porque haveríamos de querer ultrapassar o primitivo em nós?" Vem aí a bola? Sejamos primitivos.