terça-feira, janeiro 02, 2007

A escolha de Pepe

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A escolha de Pepe

Não se pode aceitar Obikwelu porque era a nossa grande esperança de uma medalha olímpica, nem recusar Pepe porque de momento não temos uma necessidade premente de centrais.

1- Num mundo perfeito, não haveria selecções nacionais que não fossem compostas integralmente por nacionais nascidos no país ou filhos de pais nascidos no país, e que soubessem perfeitamente cantar o hino, falar a língua e debitar um mínimo de generalidades sobre a história, a geografia e a cultura do país cuja nacionalidade invocassem. Mas, num mundo perfeito, também não haveria tantos emigrantes por necessidade, tanta gente deslocada das suas raízes e da sua terra, apenas para conseguir sobreviver.

Mas também num mundo justo a pátria é onde nos sentimos em casa, onde nos apetece trabalhar, viver, ter filhos, criar outras raízes. Em Portugal e apenas no futebol existem cerca de mil brasileiros a trabalhar. Ao fim de seis anos, segundo a Lei da Nacionalidade, eles auferem o direito de requerer a nacionalidade portuguesa, passando a beneficiar de dupla nacionalidade: a portuguesa, que adquiriram, e a brasileira, que não perderam. Um desses mil jogadores é Pepe, central do FC Porto que, como aqui escrevi na semana passada, é, em minha opinião, o melhor central do mundo actualmente. Porque o Brasil tem muitos e bons jogadores ou porque também na selecção brasileira vigora a lei Scolari de só chamar os que já se conhecem, Pepe nunca mereceu a honra e a justiça de uma chamada ao escrete. Sai a perder o Brasil, pode sair a ganhar Portugal — se a Federação for sensível à firme e reiterada vontade de Pepe em jogar pela Selecção Nacional. A fazer fé em Scolari, a vontade de Pepe é mesmo essa: ou joga pela Selecção portuguesa ou não joga por nenhuma.

Confrontado com o desafio de Pepe, o presidente da federação, Gilberto Madail, esclareceu a sua posição, não esclarecendo nada: por um lado, «é preciso aproveitar as oportunidades de um mercado restrito»; por outro lado, «é preciso manter a identidade da Selecção». Diga-se, em abono do desamparado Madail, que a questão não é fácil de resolver.

Primeiro, há que distinguir dois planos: o da Lei da Nacionalidade e o dos critérios próprios das selecções nacionais. A diferença está em que o primeiro estabelece quem é que é português e o segundo quem é que pode representar Portugal. Juridicamente, quem pode uma coisa pode a outra mas, em termos de imagem, há toda uma diferença: suponhamos que Paul Auster naturalizava-se português — será que o poderíamos considerar representante da literatura portuguesa?

No plano da Lei da Nacionalidade — a nossa — não discuto os critérios da sua aquisição, o que discuto é o estatuto que ela confere. Se alguém decide naturalizar-se português, ou chinês, ou bielorrusso, não acho lógico nem justo que possa simultaneamente manter a nacionalidade de origem: ou se é português ou brasileiro; as duas coisas ao mesmo tempo parece-me um privilégio excessivo e sem justificação.

Mas a verdade é que é com esta Lei da Nacionalidade e outras idênticas, que as nossas Federação Nacionais e de outros países têm de se haver. E aí é que começam as dúvidas e os dilemas: todos nós, obviamente, gostaríamos de nos ver representados por selecções desportivas que não desvirtuassem a sua identidade de representações nacionais. Mais: entre a opção de ganhar menos vezes só com atletas nacionais, ou ganhar mais recorrendo também a atletas naturalizados, eu, pessoalmente, preferiria a primeira. Mas a verdade é que o país inteiro vibrou, por exemplo, com as proezas olímpicas de Francis Obikwelu, que pouco tem de português, para além do facto de nem sequer residir em Portugal. O que vale para o atletismo não vale para o futebol?

Por outro lado, existe este argumento decisivo: se vivemos num mundo progressivamente globalizado, se instituímos, e bem, uma Europa sem fronteiras, que é uma das principais aquisições da nacionalidade e estatuto europeu, e se todos os outros fazem o mesmo, que razão ponderosa nos levaria a constituir excepção? Todos sabemos que a França, que foi campeã do Mundo, não teria mais de três ou quatro jogadores genuinamente franceses; todos vimos a selecção da Suécia (a terra dos vikings altos e loiros) com metade dos jogadores de raça negra, e o mesmo sucede com a selecção inglesa; se a selecção espanhola que esteve na Alemanha jogava com um brasileiro naturalizado a meio-campo e diversas selecções de países do Leste europeu fazem o mesmo, quem somos nós para adoptarmos critérios mais restritivos? Acaso um brasileiro não tem muito mais a ver connosco que com Espanha, Rússia ou Bósnia-Herzegovina?

A questão, todavia, só se nos pôs, nos tempos recentes, com o Deco. E a verdade é que Deco tem demonstrado uma dedicação à Selecção portuguesa muito para além do que seria legítimo esperar. Ao contrário de outros, portugueses de gema, que entram e saem da Selecção ao sabor das suas conveniências pessoais, Deco, mesmo depois de se ter mudado para Espanha, tem estado sempre disponível quando é chamado. Então, pergunta-se: se Deco foi aceite, porque não deverá ser Pepe?

Mas é justamente aqui que as dúvidas se adensam: depois de Deco e Pepe, quem se seguirá? A tentação de abrasileirar a Selecção é terrível e isso implica que, para além de todas as dúvidas e dilemas, se estabeleça um critério e se termine com o casuísmo em que temos vivido. Tem de haver regras que sejam claras, públicas e imutáveis — que se apliquem sempre e em todos os casos e que não variem conforme as situações e as necessidades. Não sei quais devam ser essas regras — penso que devem sair de um debate profundo e de um trabalho de reflexão sério, eventualmente promovido a nível do Governo e para valer para todas as modalidades. Mas há um critério que rejeito logo à partida por me parecer de flagrante oportunismo: o das conveniências das selecções. Ou seja, não se pode aceitar Obikwelu porque era a nossa grande esperança de uma medalha olímpica, nem recusar Pepe porque de momento não temos necessidade premente de centrais.

2- O Conselho de Disciplina da Liga viu-se obrigado a vir explicar por que razão, ao contrário do que tem sido sempre a regra, aplicou apenas um jogo de suspensão a Nuno Gomes, expulso com um vermelho directo em Alvalade, depois daquela entrada, quase agressão pura, a Tonel. E a explicação foi extraordinária: porque Nuno Gomes — embora já tivesse visto neste campeonato um vermelho directo no Bessa — não era reincidente, visto que o primeiro fora por palavras ao árbitro e o segundo por entrada sobre um adversário. A inovação (veremos se também vale para outros casos...) é de pasmar: a partir de agora, um vermelho directo vale o mesmo que dois amarelos e só dá origem a dois jogos de suspensão se os motivos forem os mesmos. Assim, um jogador pode ser expulso quatro vezes — uma porque insultou o árbitro, outra porque agrediu um adversário, outra porque fez gestos obscenos para o público, outra porque cortou a bola com a mão na linha de golo — e de todas as vezes levará apenas um jogo de suspensão.

É por estas e outras que eu, ao arrepio daquilo que é a esmagadora maioria das opiniões expressas, sou a favor da proibição dos magistrados no futebol. Porque não dignificam o futebol e muito menos as magistraturas.