sexta-feira, março 19, 2004

Estádio de graça

JORGE MAIA no Ojogo

O Jamor passou do prazo. Aconteceu-lhe de repente, como aos iogurtes.
Até à meia-noite do dia X, o Estádio Nacional mantinha intactas todas as
suas qualidades nutritivas. Um minuto mais tarde estava estragado e, à
hora a que lê estas linhas, já representa um grave perigo para a saúde
pública. Até à meia-noite do dia X, as históricas críticas do presidente
do FC Porto à realização da final da Taça de Portugal no "estádio de
Oeiras" eram catalogadas como simples ataques de azia regionalista.
Agora, está toda a gente de acordo, Federação Portuguesa de Futebol
incluída: o Jamor está obsoleto. Na verdade, o Estádio Nacional está
obsoleto há pelo menos duas décadas mas, pelos vistos, só Pinto da Costa
tinha reparado. Se calhar, estas coisas conseguem perceber-se melhor à
distância.

E, então, o que aconteceu para meio mundo concluir, de repente, que o
Estádio Nacional já não presta? Afinal, em 1996 - já lá vão oito anos e
sete finais - morreu gente naquelas bancadas sem que ninguém tivesse
considerado a hipótese de mudar a final da Taça de Portugal de palco.
Bastou "reforçar a segurança". Deve ser disso que falam os que evocam
razões sentimentais para lá continuar. Ou disso, ou do simbolismo do
próprio estádio, um marco da arquitectura fascista que tanto agradava ao
antigo regime. E não falta quem tenha saudades do antigo regime, pois
não?

Ora, assalta-me uma pergunta óbvia: o que pode, então, ser mais
importante do que a vida de alguém? O que fez, afinal, com que o Jamor -
inaugurado nos idos de Junho de 44 mas funcional até ontem - se tornasse
obsoleto do dia para noite? Numa palavra, dinheiro. Em mais palavras,
muito dinheiro. Façam as contas comigo: os finalistas deste ano são o FC
Porto e o Benfica e a lotação do Jamor é de 37 mil lugares. Conclusão:
não chega. Some-se a isto a necessidade rentabilizar os novos estádios e
o resultado é uma pedra tumular em cima do relvado do Estádio Nacional
com a inscrição de sempre: "Que descanse em paz".

Mas os argumentos multiplicam-se. Com o Dragão e o Estádio da Luz de
fora das opções por motivos óbvios, sobram os 55 mil lugares do Alvalade
XXI como solução evidente para uma final fora do Estádio Nacional. E
matam-se uma série de coelhos com a proverbial cajadada: Pinto da Costa
fica sem ter de que se queixar; a final continua a realizar-se na
capital do Império, tal como Salazar sempre sonhou; e o Sporting, que
até foi eliminado da Taça, ganha o direito a sentar-se na bancada VIP, à
direita do Presidente da República. Conseguem imaginar? Os três grandes,
juntos, debaixo do mesmo tecto. Conseguem imaginar os rios de dinheiro
que uma coisa assim pode render? Parece um sonho, valha-me Deus. Há
coisas que encaixam tão bem, que são tão perfeitas, que até dá vontade
de chorar. Isto são razões sentimentais, que diabo. Só podem ser.