Miguel Sousa Tavares na Abola
É exigível que o sino toque a rebate e que toda a gente que está em Alcochete entenda que o País espera deles muito mais e muito melhor do que aquilo que tem sido visto até aqui.
Pareceu-me a mim, mas talvez esteja enganado, que tinha sido, durante mais do que o último ano, uma das raras vozes que na imprensa desportiva portuguesa nunca escondeu as suas desconfianças relativamente à capacidade de Luis Felipe Scolari corresponder às expectativas que uma nação inteira depositou nele e nasua Selecção. É verdade que, consumado o afastamento de Vítor Baía, muita gente escreveu o que precisava de ser escrito sobre essa atitude de pura prepotência do seleccionador. Mas, feito isso, passaram adiante, porque entenderam que não adiantava mais chover no molhado e a hora era então de tocar a reunir. Eu, por mim, confesso que não consegui perdoar essa atitude do seleccionador, pela injustiça e pela arrogância que ela revelou, totalmente inaceitáveis em quem tem por obrigação ser um condutor de homens. O caso Vítor Baía foi para mim um sintoma de qualquer coisa demais vasto e mais sério: percebi que circunstâncias laterais, e não o mérito, podiam determinar as escolhas do seleccionador — e isso era grave e prenunciava potenciais desastres. Hoje, consumado o desastre grego, quase todos se questionam porque ficou Baía de fora, porque fica Ricardo Carvalho no banco, porque é que Rui Costa tem lugar cativo, enquanto Deco e Cristiano Ronaldo são suplentes. A mim o que me espanta é que só agora ocorram tais perguntas, como se elas não se impusessem já naturalmente, após ano e meio e 18 jogos particulares em que nunca houve mais do que meia hora de futebol aceitável. Todos sabiam qual era o onze de Scolari para o Europeu — exactamente o mesmo com que tinha começado há ano e meio atrás, salvo a única concessão de última hora, que foi a opção por Maniche em vez de Petit, a única asneira que ele não cometeu. E, embora esse onze tenha dado exuberantes provas de incapacidade, quer a nível de resultados, quer no futebol totalmente desconexo e sem tino exibido em sucessivos jogos, todos continuaram confiantes que se tratava apenas de maus ensaios gerais, a que se seguiria, não sei porque artes milagrosas, uma auspiciosa estreia, quando aparecesse o primeiro jogo a doer. A onda histérica de patriotismo que invadiu o País exigiu que todos calassem as suas críticas, sob pena de, como no antigamente, serem tidos por maus patriotas. Passámos da máxima de «a Pátria não se discute», de Salazar, para a nova versão de «a Selecção não se discute». Após aqui ter escrito, mais uma vez, no início de Abril, que a Selecção de Scolari, jogo após jogo, não dava mostras de qualquer evolução ou do mais simples «fio de jogo», José Manuel Delgado ripostou, aqui também, o seguinte: «Poisados nos ramos, os abutres de serviço atacam e fogem, sem outras razões que a sua própria natureza, sempre que lhes cheira a sangue. Não matam masmo em, minando as condições de estabilidade em que o trabalho da equipa de todos nós deveria processar-se.» Achei extraordinário que «as condições de estabilidade» exigíveis (para além das condições de trabalho concedidas a Scolari e à Selecção, em que nada, rigorosamente nada, lhes faltou), requerem-se ainda a censura prévia sobre as críticas feitas a tempo de poderem ser úteis — isto é, antes e não depois dos resultados à vista, antes e não depois de tudo se tornar irremediável. De qualquer maneira, hoje entendo que não é a hora para passar da grande esperança à grande descrença. Os que comigo estiveram nos dias anteriores à abertura do Europeu são testemunhas de que eu vaticinei a derrota contra a Grécia, mas acrescentei que a boa notícia daí resultante ia ser a necessidade de Scolari rever todas as suas ideias feitas e reagir em desespero de causa. Acredito que é isso que se vai passar contra a Rússia, que erros gritantes da formação irão ser corrigidos — espero que todos e com a coragem necessária. É evidente que isso, por si só, não garante o êxito, porque Scolari nunca treinou, nunca preparou, nunca encarou a hipótese de um onze alternativo àquele que fixou há ano e meio e do qual nunca se afastou. Mas, considerando que a Rússia é, em qualquer circunstância— e, ainda mais, desfalcada e jogando fora — uma equipa perfeitamente ao nosso alcance, deve bastar pôr a jogar os melhores e os que estão em melhor forma para, por enquanto, poder continuar a alimentar esperanças. Não é, pois, a hora de entrar num bota-a-baixo, que é simultaneamente tardio e precoce. Em tempo de guerra não se limpam armas e estas são as que temos. Antes de Scolari fechar a convocatória, era possível e desejável escutar todas as críticas; agora e por enquanto, não adianta nada. Só há uma coisa que não resisto a dizer, porque não é uma crítica ao seleccionador, mas antes aos que ajudaram a preparar um clima de facilitismo que, em minha opinião, contribui largamente para o desaire contra os gregos. O que quero dizer é que nunca vi, em tempo algum, um seleccionador e uma Selecção Nacional disporem de tantas e tantas condições de êxito e, ao mesmo tempo, toda a gente achar que nada lhes era exigível. Quando Scolari diz que «a cobrança mínima» é a passagem aos quartos-de-final, é espantoso que ninguém se indigne e pergunte se depois dos milhões gastos na organização do Euro para que Portugal tivesse finalmente hipótese de ganhar alguma coisa, depois dos salários, prémios e contratos publicitários milionários das vedetas da Selecção, Scolari incluído, depois das condições de trabalho únicas de que sempre dispuseram, depois do apoio sem desfalecimentos de um país inteiro, acham que chega os quartos-de-final? Como é possível que o Presidente da República e o primeiro-ministro se desloquem ao estágio da Selecção (ao contrário do que sempre foi tradição), para irem lá dizer que ninguém lhes exige nada? Não exigimos? E porque não? Acaso não teremos o direito de exigir que lutem pelo título europeu, depois de todo o esforço financeiro que o país sustentou? É que somos todos muito patriotas, mas os únicos que ganham com esse patriotismo são os que estão na Selecção. E, embora no futebol já lá vá o tempo em que representar Portugal era por si só uma honra e um privilégio que dispensa qualquer outra compensação, é exigível, pelo menos, que quem lá está, honre o contrato de profissional que tem com a Selecção. Em que outro sector de actividade é aceitável que alguém seja principescamente pago, alvo de todas as atenções e homenagens, rodeado de inexcedíveis condições de trabalho e depois ainda lhe digam que nada lhe é exigível em troca? É exigível, sim. É exigível que o sino toque a rebate e que toda a gente que está em Alcochete entenda que o país espera deles muito mais e muito melhor do que aquilo que tem sido visto até aqui.
Os cobardes adoram linchamentos
Há 8 horas