quarta-feira, junho 02, 2004

Campeões da Europa - Miguel Sousa Tavares

Miguel Sousa Tavares Nortada na abola


Campeões da Europa

Que mais querem do FC Porto? Se alguém tem alguma dívida para com outrem, é Portugal para com o FC Porto e não o inverso .

1- Está feito: o FCPorto é o clube português com maior dimensão internacional de sempre. Já o era antes de Gelsenkirchen mas há sempre uns teimosos que não se querem deixar convencer e, neste caso, insistiam que o título de campeão europeu que o Benfica tinha a mais que o FCPorto era mais importante que uma Taça Intercontinental, umaTaça UEFA e uma Supertaça Europeia — títulos que o FCPorto tem a mais que o Benfica. Agora já não há lugar para qualquer contestação: o FC Porto tem cinco títulos internacionais, o Benfica tem dois, e,mesmo se ambos foram duas vezes campeões europeus, não há comparação entre o valor de um título de campeão europeu obtido na Champions League, ao fim de 13 jogos, e um obtido na extinta Taça dos Campeões dos anos 60, ao fim de sete ou nove jogos.Mas faça-se justiça à história: tanto quanto me lembro ainda, acho que aquela equipa do Benfica de 1963 teria ganho a Champions League, se ela já existisse. Mas também acho que a equipa do FC Porto do ano passado — que, em minha opinião, era ainda melhor e jogava melhor futebol que a deste ano—teria se calhar ganho também a Champions League, se o destino não lhe tem reservado apenas a Taça UEFA. E se começo por este ajustar de contas histórico o rescaldo de uma semana que ainda vive, intensa e emocionante, no olhar, no coração e na cabeça de cada portista, é porque constatei, estupefacto, que só mesmo no dia seguinte à memorável jornada de Gelsenkirchen é que o País se deu verdadeiramente conta do extraordinário feito que o FC Porto tinha levado a cabo.Até aí senti (e disse-o) que o país desportivo não merecia esta equipa do FCPorto e tudo o que ela já havia feito pelo prestígio do futebol português. Mal o FC Porto desembarcou na Alemanha,segunda-feira passada, a comitiva foi recebida com as notícias que chegavam de Lisboa e que davam conta do caso desportivo que ocupava o País: a inscrição irregular de Ricardo Rocha e a possibilidade de o Benfica vir a ser penalizado por isso com a perda do segundo lugar no campeonato e da Taça de Portugal. Embora a todos nós, que ali estávamos, se tivesse tornado desde logo evidente que o assunto estava fadado para morrer de morte natural, não conseguimos evitar o espanto de realizar que ele tinha afastado todo o noticiário relativo ao FCPorto da primeira página do noticiário desportivo, em jornais, rádios e televisões, e que a histeria lisboeta com o palpitante assunto prosseguiu até à noite do dia seguinte—terça-feira, véspera da final de Gelsenkirchen. De repente o verdadeiro assunto que interessava ao país desportivo não era o de saber se, no dia seguinte, uma equipa portuguesa conseguiria vencer amais difícil e a mais prestigiada competição de clubes do mundo inteiro, perante o olhar de centenas de milhões de espectadores no mundo inteiro, mas sim o de saber se era o Benfica ou o Sporting quem, na próxima época, teria acesso à terceira pré-eliminatória dessa mesma competição! E quando, ao telefone com um amigo benfiquista em Lisboa, lhe perguntei que absurdo era aquele, ele explicou-me que se tratava de «mais uma cabala montada pelo teu clube contra o Benfica». O meu clube?O meu clube estava concentrado no seu hotel a pensar na hora que odestino apenas reserva aos grandes e se algum pensamento unânime se escutava entre a comitiva portista, presidente incluído, sobre o melodrama lisboeta era o de que jamais o FC Porto aceitaria na sua sala de troféus uma Taça de Portugal perdida em campo e ganha na secretaria— por mais que entendessem que fora muito injustamente perdida.Para que quereria uma taça dessas um clube que estava na véspera de poder ganhar a Champions League, depois de ter ganho a Taça UEFA na época anterior, os dois últimos campeonatos ou sete dos últimos dez? Acaso alguém poderia imaginar que isso nos traria um grama que fosse de satisfação ou prestígio acrescentado ? Percebi então o quanto a falta de hábito de vencer pode criar vícios de pensamento doentios e incuráveis. Só quem se habituou a sonhar baixinho pode imaginar que lá, nas alturas onde se sonha grande, se pode perder tempo e concentração para a tarefa de ganhar perante o mundo inteiro uma Champions League para se tentar ganhar na secretaria uma Taça de Portugal! Ocuco-milharuco não imagina o que se passa nas alturas onde voa a águia-real! Enfim, quarta-feira, e com o assunto já a caminho da sua morte natural, a imprensa lá cumpriu a sua inevitável obrigação de trazer de volta o FCPorto à primeira página dos noticiários.E quinta-feira, claro, era Portugal quem tinha acabado de ganhar a Liga dos Campeões. Muito embora, regressado já com a manhã nascida a Pedras Rubras, onde três mil pessoas esperavam há 10 horas para ver a taça e os funcionários do aeroporto faziam alas para saudar os campeões à saída do avião, eu tenha encontrado na imprensa desportiva dessa mesma manhã um artigo garantindo que o feito desportivo da semana não acontecera na véspera, em Gelsenkirchen, mas sim na segunda-feira anterior, num estúdio da SIC, invadido em directo pelo presidente do Benfica, para discutir a questão Ricardo Rocha e inaugurar um novo estilo televisivo que, se tivesse sido protagonizado pelo presidente do FC Porto, estaria ainda hoje a ser objecto de comentários relativos à sua grosseria e falta de maneiras. Mas compreende- se: é que mesmo assim o câmara da SIC de serviço na inauguração da casa do Benfica em Vila Real de Santo António ia deixando a pele na missão assim que o presidente do Benfica assolou as massas contra a SIC, culpada de ter divulgado uma notícia... verdadeira. E nem foi preciso o seu aviso de que embreve vai divulgar o índex dos jornaisq ue «tratam mal o Benfica» (?!), a fim de que sejam boicotados pelos benfiquistas, para que logo na sexta- feira o FC Porto tenha regressado ao seu habitual lugar de rodapé de primeira página e para que no sábado eu tivesse de folhear até quase ao fim os jornais desportivos para finalmente encontrar a notícia de que o FC Porto ganhara também o título de campeão nacional de básquete, a juntar ao futebol, ao andebol e, espero, ao hóquei em patins. Felizmente que doravante vai ser mais fácil remeter o FC Porto para os pés de página: temos aí, durante um mês, as notícias sobre a empolgante Selecção Nacional para nos ocupar.


2 - Mas não quero ser injusto: de Lisboa chegaram-nos também notícias—ainda nós vivíamos atordoados aquele momento de uma vida, à saída do ArenaAufShalke— da festa que saíra às rua sem Lisboa, onde até a câmara municipal manteve acesas as luzes do edifício, em homenagem aos campeõeseuropeus. Chegaram-nos notícias dessas também dos Champs- Élysées, em Paris, da costa Leste americana, de África e do Brasil, de todo esse vasto mundo onde se fala português, de emigração ou de assimilação, e onde,nos últimos anos, o FCPorto tem sido o bálsamo contra as saudades, as humilhações, as privações, tem sido o mensageiro da alegria e do orgulho de ser português contra todas as tristezas e frustrações em que a pátria ou a ausência dela é fértil.Mas as notícias da festa em Lisboa caíram bem entre os portistas e deitaram já para o plano psicanalítico os que nem assim, nem agora, se renderam à justiça dos factos. Os que escreveram que o FC Porto só foi campeão europeu graças a Mourinho, o que faz com que, a esta hora, pudesse ser o Sporting o campeão europeu, se os sócios não têm impedido a sua contratação, três anos atrás (ou o Benfica, se o tem mantido...). Ou ainda quem descobriu que o FC Porto só foi campeão europeu porque a Liga de clubes acedeu a adiar o jogo com o Naciona lda Madeira, dias antes da eliminatória com o Corunha.Ou que só foi campeão europeu porque Scolari acedeu a prescindir da convocatória dos jogadores portistas para o jogo particular com a Suécia, três dias antesdo jogo da Corunha—decisão criticada, entre outros,por Luís Figo. Eu sei o que lhes vai na alma, o que verdadeiramente gostariam de ter dito e só por pudor o não disseram: «Podíamos ter evitado isto,podíamos ter evitado que o FCPorto fosse campeão europeu...» Não, coitados, nem sequer percebem que não podiam.Porque não sabem de que matéria são feitas as vitórias como esta. Não fazem ideia do que trabalharam os jogadores e a equipa técnica durante estes dois anos. Do que prescindiram, do que sofreram, do que lutaram para deixar os seus nomes na história do futebol português e mundial e dar esta alegria sem fim a todos os portistas —e cada vez são mais!—espalhados por esse mundo todo. Não ouviram o Derlei gritar de dores, forçando uma recuperação clínica dita «impossível » a tempo de ajudar a equipa neste decisivo mês de Maio. Não viram a determinação serena dos jogadores antes da final, a sua alegria depois da vitória, que não era a euforia desmedida de quem tinha acabado de conseguir um milagre mas sim a satisfação imensade terem visto recompensado o esforço de um trabalho feito com profissionalismo,brio e vontade. Nestas horas lembro-me sempre de uma coisa que o meu pai me disse, era eu pequeno: «Filho, se algum dia quiser conhecer a verdadeira natureza dos portugueses, leia a história da batalha de Alfarrobeira,onde o infante D. Pedro das Sete Partidas do Mundo foi morto às mãos do sobrinho, o rei D. Afonso V, envenenado contra o tio pelas intrigas da corte de Lisboa, que não conseguia suportar que um homem da província fosse maior que todos eles. É a história da inveja, essa marca fatal dos portugueses.» Não me esqueci da lição de Alfarrobeira. Revejo-a todos os dias,na história contemporânea de Portugal. Lembrei-me dela em Gelsenkirchen, lembrei-me dela ao regressar a casa. E, por isso,quando outro homem de Coimbra, e de que eu tanto gosto e tanto admiro, que é o Manuel Alegre, declarou, sobre a vitória de Gelsenkirchen, «hoje, Portugal esteve com o FCPorto;espero que o FCPorto esteja com Portugal no Europeu», eu percebi a sua mensagem. O que ele quis dizer foi que a festa de Lisboa tem um preço a pagar pelos portistas: estar com Scolari,no Dragão, no próximo dia 12, e esquecer, entre outras coisas, que Vítor Baía estará na bancada e Ricardo Carvalho no banco de suplentes. É o preço a pagar por, finalmente (finalmente, foi preciso aqui chegar!),nos ter sido feita alguma justiça e reconhecido algum mérito. A isso, com todo o respeito, respondo simplesmente: o FC Porto foi campeão europeu em nome de Portugal.Que mais querem do FC Porto? Se alguém tem alguma dívida para com outrem, é Portugal para com o FC Porto e não o inverso.